CENAS DE NOVEMBRO >> Sandra Modesto

 

Um copo cheio de água é a única inspiração do dia. Palavras escorrendo goela abaixo escuto o apito da escola no quarteirão da minha rua, aulas presenciais no último bimestre. 

Atravesso quarteirões com minha roupa justa e o sol batendo no pedaço de rosto, nas costas, braços, colo. De repente, respingos de chuva bêbados prenunciando o verão. 

Nesse quase dezembro meio doído. 

Algumas dúvidas carregam suportáveis restos. 

Meu olhar segue pelas avenidas. O moço passa por mim, sem máscara. “Essa gente sem proteção”. Sinto-me uma estranha querendo julgar as pessoas. 

Envolta nessas intrigas, fiz uma rápida filmagem artesanal das horas em que chorei e prossegui. 

No boteco da esquina, uma confraria sagrada de homens, bebe cerveja. Passo por perto. 

A chave do portão enfia na fechadura.  Reabro minhas intenções.  Falta pouco, muito pouco pra eu segurar o tempo. Banho frio relaxando nuca, libido acesa descendo por todo o corpo. Afago meus cabelos brancos numa lentidão proposital. 

São sete horas da noite. O vendedor de abacaxi interrompe minha escrita. “Duas por oito reais, docinhas”. Compro. Eu, que nem gosto de abacaxi. Mas o moço tinha razão. 

Vou dormir ao som imaginário de um show ao ar livre. 

Desperto sem hora marcada sem correria sem frenesi. 

Quando a fumaça do café se espalha pela cozinha, viro a privilegiada arrumando o desjejum de tudo o que eu gosto. Uma luz natural atravessando a janela e a porta, um vulto de mulher me assusta pelo vidro da mesa. Sou eu. 

Ainda não é tempo de abraçar um mundaréu de gente, ainda conversamos com máscaras, às vezes sorrimos com os olhos. Há lirismo nesses dias despedaçados. 

Uma dança com leves sonetos / eu quero escrever / depois do vendaval.

Comentários

Albir disse…
Há sempre lirismo, Sandra, quando é você que conta!
Carla Dias disse…
Ainda bem que o querer não abandona o seu escrever, Sandra.
Zoraya Cesar disse…
"A chave do portão enfia na fechadura. Reabro minhas intenções." Sandra, amei essa frase. O texto todo é uma viagem minimalista e suave, gostei muito.
Gostei muito de muitas passagens, não saberia escolher... realmente um texto lírico, algo melancólico, suave e sensual, adorei.
Paulo Barguil disse…
Cenas vivenciadas e relatadas caprichosamente que nos possibilitam um mergulho interno no vendaval que nos balança. Obrigado, Sandra.

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