VÉSPERA << Cristiana Moura

                                                    

Vocês nem imaginam! 


Tem uma barata aqui em casa! A bem dizer no meu banheiro e é madrugada!


Tento  matá-la com o jato d’água do chuveirinho há cerca de uma hora. É uma tal estranheza! Sinto-me torturando o inseto e me questionando: Um ser que não morre com radiação nuclear, vai morrer afogado?


Diante da constatação do óbvio, dou-me conta que é a força da água e não a água em si que pode, por fim, aniquilá-la. Por certo esta oração pode ser metáfora para alguma passagem da vida na qual não consigo pensar agora, imbuída que estou da tarefa de matar: é a força d'água e não a água em si.  — Eis a Metáfora para o momento da vida do qual ainda não me lembro.


Retomo, no lugar-pensamento, minha dura tarefa, enfim, estou em uma guerra. Sinto medo? Sim. Todavia, coragem não é ausência de medo, é ir apesar do medo, como diz o existencialista Rollo May em Coragem de Criar. Bem, com o hábito renascido, durante a pandemia, de não entrarmos calçados em casa, não há um único chinelo à mão… Continuo com o ininterrupto jato d’água.


Sinto pena da barata. Chego a desculpar-me por não lhe promover uma morte rápida mesmo que não indolor. São tantos os pensamentos a me atravessar quase que num diálogo com ela. Pergunta do leitor: Ela quem?Ora, ela a Barata.


Sinto-me semelhante a Clarice Lispector em Paixão segundo G.H. É ao mesmo tempo, potente e mágico a identificação com a mais que genial escritora. Penso que vou precisar de três encarnações para escrever de forma tão… tão… tão…


Desde que tive COVID, fogem-me as palavras, em especial os adjetivos.


Por que justamente os adjetivos? E por que ainda tem acento quando o usamos em uma pergunta ao final da oração? Nota mental: rever as últimas mudanças gramaticais.


Preciso de uma nova gramática da língua materna e, preferencialmente, em papel. Apesar de estar escrevendo num smartphone com três câmeras, sou, significativamente, analógica.


Você deve estar se perguntado: qual a relação da escrita via celular e as três câmeras do mesmo? Nenhuma. Trata-se de uma piada interna e não me cabe explicá-la agora, momento em que estou à beira de me tornar uma assassina. Do que mais devo estar à beira? E você, também está à beira? 


Sentir empatia por uma barata é estranho demais da conta! Quando estava a ponto de desistir do contínuo jato d’água, decidi,  imaginar na barata, uma pessoa da ordem dos desafetos. Funcionava na academia quando o exercício exigia bater com um determinado instrumento num pneu que suponho ser de caminhão. Imaginei o rosto de Messias, por conseguinte o jato d’água pôde continuar. Ah, como são intensas as emoções nesta eterna véspera do domingo dia 30 de outubro do ano vigente!


Só quando então, ela estava visivelmente fragilizada e se fingindo de morta, (sim, as baratas se fingem de mortas. Isso nunca aconteceu com vocês? Aposto que sim) corro até a entrada de casa e me armo com um chinelo do Gabriel. Decido pelo dele por conta de ser três números maior que meus calçados, ou seja, uma arma , provavelmente, mais eficaz. Um chinelo ou uma chinela? Quando eu morava em São Paulo era chinelo. Há mais de 30 anos morando na Terra da Luz é chinela. Delibero, sem o auxílio da gramática, que chinele é substantivo ou objeto não-binário a partir do instante-já.


E, se estou aqui e agora escrevendo, é porque jaz um inseto sob chinele de Gabriel.


Chego ao fim da guerra ouvindo o cantar dos pássaros. Só identifico dois cantos: o dos bem-te-vis e o dos não-bem-te-vis. Falemos sobre o canto dos pássaros em outro momento. 


Dei-me conta que, aqui em casa, temos apenas duas armas: Chinele e Chuveirinho. Meu coração assassino deseja, com toda força que, essas sejam as únicas armas a ter morada nos mais diversos lares. É pouco? Bem, podemos incluir a vassoura, o inseticida e o verbo ao meu desejo cardíaco — e nada mais.


O dia amanhece. Eu quero mesmo é escrever um poema composto de 13 palavras. Nem mais, nem menos.


Essa crônica quase sem fim, paro de a escrevê-la agora. É que vou, bem ali, escrever história em uma urna.

Comentários

sergio geia disse…
Showzaço de crônica! Que venham muito mais destas, criatividade em ebulição. Amanhã é 13? Não, é 30. Mas vai ser 13 também.
whisner disse…
Nada como uma crônica assim pra fazer a gente sorrir e ter esperança.
Cristiana Moura disse…
Uma estrela há de brilhar!
Zoraya Cesar disse…
"Apesar de estar escrevendo num smartphone com três câmeras" HAHAHAAAH, muito bom...

Cris, eu simplesmente AMEI sua crônica. Apenas isso.
Cristiana Moura disse…
Só, auto bullying 😉!

Obrigada.

Eu li está crônica na sexta à noite, antes de publica-lá, numa aula inaugural de um curso de especialização de uma Universidade Privada… foi tão bom!!!!

Postagens mais visitadas