MADREPÉROLA >> Ana Raja


Há quanto tempo a confusão tomava conta do atormentado em dias de todos os dias?  Pessoa que me espanta com  sua forma em desalinho com o trivial. Sempre embaixo de uma macieira deslumbrante. Tenho comigo que ele procura camadas na definição simples do fruto proibido. 

Ele chega pontualmente no período da manhã. A bolsa de couro cru de alça longa que carrega na transversal do corpo vem abarrotada de livros cifrados e cadernos começados em linha reta. Sua vestimenta me parece apropriada para o evento: camisa branca de manga curta com botões de madrepérola, bermuda de sarja com uma dobra na barra na altura do joelho. Não usa cinto, talvez atrapalhe a oxigenação do cérebro. Nos pés, o tênis repetido e uma meia de cano curto fazem combinação com o tom da bermuda.

Estende no chão uma manta feita de fuxico. Algumas almofadas de cores frias e um peso de papel de vidro completam o grande ritual da pessoa. O dia acontece arrastado, marcado por uma narrativa duvidosa, numa tonalidade rosa, escrita por uma mão canhota apoiada no colo de quem observo.

 Nos livros espalhados ao seu redor, investiga o conceito sobre a escrita, mais aprazível à sua alma. Folheia as páginas, ora devagar, ora na rapidez dos cílios piscando. O que se lê nos episódios inquietantes, são palavras empoladas de aspecto normativo. 

Debatemos os nossos corpos na incompreensão limitada do intelecto.

 Fecha todos os livros na mesma cadência, causando um som harmônico a cada bater de capa. Esse ritmo desperta em suas mãos algo como uma tremedeira. Nesse momento, cada caderno mostra a própria função. A pessoa - munida de lápis azul - escreve afobada diante das cenas que atravessam seu pensamento. Escreve, escreve até que eu experimente da sua respiração branda, encaixada nas camadas do que não se vê. Algo genial está ali. A falta de consciência nos leva ao encontro daqueles livros que foram fechados no impulso da raiva. Ele não se dá conta do que escreveu, é quase um dedilhar perfeito nas teclas do piano da casa da minha infância. 

Preciso de mais folhas, espaços, estrelas. O resto de luz que ainda percorre na amplidão é o motor das mãos calejadas pelo aperto do lápis no desespero de que alguma letra escape do raciocínio invertido e a coesão deixe de existir. É um momento magnífico, não penso, não reajo, não quero, e seguimos juntos de encontro ao final.

A pessoa, quando se esvazia de si, olha em meus olhos e o dia acaba como os outros de dias atrás. Já não é o mesmo; já não sou o mesmo. Recolhe os livros e os sufoca dentro da bolsa de couro. Nos galhos da macieira estende um varal de nylon amarelo, arranca as páginas presas no espiral do caderno e as pendura com cuidado; estão destinadas a passar  a noite sob a escuridão que nos reveste a cada passo que damos rumo ao conhecimento.

A madrugada traz o vento frio e bate devagar nas folhas penduradas que esperam pacientes o dia amanhecer. O trabalho da reescrita acontece assim, enquanto dormimos. As letras se ajeitam, mudam de lugares, abrem parágrafos, despencam do varal, encontram sinônimos menos rebuscados. Alteram a linguagem, criam técnicas, experimentam e esperam a chegada do sol radiante ou acompanhado de nuvens passageiras. Para ele não importa, toma o café da manhã sossegado na varanda, se arruma com seu uniforme de escritor e caminha até a macieira em que trabalha. Antes de estender a manta de fuxico, costurada com pontos de ajustes invisíveis, desliza os dedos por todas as folhas penduradas no varal, apanha as que caíram e as guarda no bolso lateral da bolsa. Elas servirão para um outro anoitecer. 

Os nossos olhos se encontram e não sabemos o que nos acontece. Me sinto confortável embaixo da macieira, entrelaço os dedos nos cadernos, nos lápis e nas mãos que criaram esse começo impactante, que desagua em um meio de uma história bem escrita e flui para um final surpreendente, aberto ou esperado pelo leitor. 

Não importa a confusão do atormentado lá no primeiro parágrafo. O certo são os passos que damos juntos, por que eu posso ser tudo ou nada. Enquanto essa história fizer parte do processo de criação literária, eu sou o dono de mim.

Hoje faltou ao trabalho. Esperei a sua chegada, o que não aconteceu. Ocupei o espaço da pessoa. Ela não voltou para reivindicar os seus originais. 

Minha camisa é de manga longa com botões de madrepérola. O tênis de sempre com meias de cano curto combinando com a bermuda de sarja. Não uso cinto.

Imagem © Ryan McGuire por Pixabay

anaraja.com.br

Comentários

Zoraya Cesar disse…
"Ocupei o espaço da pessoa. Ela não voltou para reivindicar os seus originais. " Uma frase repleta de sentidos, todos se desdobrando em outros, num caleidoscópio infindável.

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