OS COELHOS 2ª parte >> Zoraya Cesar


Detesto todo mundo e todo mundo me detesta e tenho orgulho disso. E estava com ganas daquela velha desgraçada e seus coelhos malditos. 

Voltei pra casa com desejo de vingança. Não por causa dos cachorros, que nem meus eram (e nem que fossem). Mas porque eu tinha certeza que a culpa era da velha desgramada da vizinha.

Esmurrei a porta dela aos berros. Ela apareceu, trêmula, balbuciando qualquer coisa estúpida e ininteligível.

A velha lazarenta começou a tremer ainda mais, e no meio da babugem que escorria de sua boca quase sem dentes, entendi que ela pedia desculpas por qualquer coisa, que os coelhos nem gostavam de couve, mas se eu pudesse, por caridade, fornecer uma que fosse, de vez em quando, apenas, ela era pobre, os vizinhos ajudavam.... No fundo do casebre sebento, um dos coelhos esquisitos dela mastigava um pedaço de mato, provavelmente um pedaço de couve. Da minha couve!

Mentirosa. Nunca vi coelho que não comesse couve. E eu não tava ali pra fazer caridade.

- Um animal feroz acabou de estraçalhar um cachorro e aleijar outro. Imagina o que vai fazer com esses coelhos de merda. E se eles não morrerem de morte matada vão morrer de morte morrida, porque vou jogar veneno em tudo o que eles comem.

Nas noites seguintes nada aconteceu. Ótimo. Então eu tinha razão, a culpa era coelhos fedidos. A velha safada deve tê-los trancado. Duas coisas, no entanto, me encafifavam. Que animal das redondezas teria força e destreza suficientes para atacar e inutilizar dois cães de caça? E por que os coelhos não comiam as couves na hora? Corria um boato que a megera tinha sido cigana de circo quando jovem. Vai ver treinou os coelhos para roubarem e levarem para ela. Que fosse.

Importante era que minha horta estava em paz. De qualquer maneira, borrifei o veneno em tudo. Tava pouco me lixando se eu também não poderia consumir nem vender. Aliás, venderia assim mesmo. Quem comprasse que limpasse direito, não era problema meu.

Na semana seguinte, porém, ouvi um escarcéu vindo do galinheiro. Peguei meu rifle e corri pra lá, tropeçando na escuridão de uma noite sem lua nem estrelas.

Antes mesmo de chegar, senti o indefectível cheiro ocre e úmido de sangue esparramado. Entrou pelas minhas narinas com a força de um soco nas ventas. Acendi a luz do galinheiro e vi meus galos e galinhas estropiados e comidos. Parecia que um vendaval munido de dentes tinha passado ali. Os ovos haviam sumido. O que sobrara dos galináceos estava em pânico, acuado num canto atapetado de tripas, penas e sangue.

Fiquei possesso. Nem mesmo a mais astuciosa das raposas conseguiria driblar as armadilhas que pus no galinheiro. Mas tive a insana impressão de que era culpa dos coelhos da velha verruguenta. Sei que eles são herbívoros, não me venham com lições de zoologia, sou homem do mato. No entanto, não me saíam da cabeça os olhos, os olhos daqueles amaldiçoados... amendoados e amarelos, como os de uma raposa, não os estúpidos olhos arredondados e marrons dos coelhos. Talvez fossem de uma raça diferente, lá das terras daquela cigana miserenta. Sei lá. Só sei que alguma coisa fizera aquela carnificina e, na falta de explicação melhor, culparia os coelhos.

Ao amanhecer fui até a choupana já metendo o pé na porta, acusando-a de mandar os coelhos atacarem minhas galinhas. Ela chorava, dizia que era uma pobre coitada e que coelhos só comiam mato, ela ia pagar pelas couves... Aquele rame rame de pobreza e bichinhos inocentes só atiçou minha raiva.  Disse que ia tacar fogo naquela pocilga e ia comer coelho assado.

Ao ouvir isso, a velha caiu, estrebuchando.

Ficamos ali, eu a observar, sem mover um dedo; ela, a estertorar. Queria mais é que morresse, para eu matar os coelhos em seguida. Racionalmente, sei que era loucura aquela história de coelhos assassinos e carnívoros. E a mocreinha não teria forças para isso. Mas instintivamente eu sabia, eu simplesmente sabia, que eles eram culpados. E tudo porque neguei uma couve e joguei os cães em cima dos desgraçados.

Os coelhos tinham se aproximado, com suas narinas frementes e nervosas. Quando a velha parou de se mexer, eles se voltaram, as orelhas para trás, as patas traseiras batendo num inesperado ritmo sincopado. Olhavam para mim, aqueles extraordinários olhos vulpinos, amarelos e amendoados, brilhantes de malícia. Um deles grunhiu, deixando à mostra dentes pontiagudos e caninos pronunciados. Não sei porque, mas tive medo. 

Andei de costas até a porta. A velha não se mexia. Devia estar morta. Tomara os coelhos a comessem. Mais tarde eu voltaria para tacar fogo em tudo. E depois ia comprar novas galinhas e refazer meu galinheiro.

Isso era o que eu achava.



Eu dormia o sono dos justos quando o barulho incessante me despertou. De novo, o escarcéu no galinheiro. Acompanhado de sons intrigantes, uma sinfonia de batidas surdas com rosnados e o regougar típico das raposas e também guinchos de coelho. Eu sabia o que estava acontecendo. O que só tornou tudo ainda mais aterrorizante. Mesmo pra mim, homem do mato.

Um forte ruído de patas se aproximava. Peguei minha espingarda e fui olhar pela janela.

Lá fora, um bando de coelhos. Grandes. Fortes. Mesmo na escuridão da noite, eu podia ver seus olhos brilhantes e selvagens. Mesmo na escuridão da noite, pude vislumbrar manchas vermelhas em seus enormes dentes. Olhos, dentes, tudo de raposa. Mas eram coelhos. Maldita cigana.

Nunca vira aquilo, nunca ouvira falar daquela raça de coelhos carniceiros. Pareciam saídos de um pesadelo. Só que eu não teria tempo de acordar.

Eles cercaram a casa. Eu tinha muitas balas, mas não podia matar todos. Não tinha por onde fugir, nem como me esconder, aquela massa de animais se jogava contra a porta, a fim de derrubá-la. Poderiam ter invadido a casa silenciosa e sorrateiramente, como fizeram no galinheiro. Mas não, queriam mesmo me assustar. 

Sei que eles vieram se vingar pela morte da velha e eu só tenho uma saída.  Que não é uma saída, mas talvez diminua o horror. Tomei a maior dose de veneno, o mesmo veneno que borrifei na horta para matá-los, a maior dose que consegui. Já que ia morrer, os que me devorassem iriam morrer comigo. E, talvez, com sorte, o veneno desse cabo de mim antes que eles entrassem. 

Bam!

A porta da frente se abriu com um estrondo. E o veneno ainda não fizera efeito...

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Curiosidade: o dia em que coelhos atacaram Napoleão Bonaparte. Clique aqui

Link para 1ª parte

link para crédito da foto

 


 

 

 

 

 

 

Comentários

branco disse…
Pra que perder tempo tentando encontrar muitas palavras?
SENSACIONAL!
Marcio disse…
Puxa, esses coelhos da Zoraya são mesmo terríveis.
Acho que, entre os coelhos, são comparáveis somente ao Sansão - aquele espancador de meninos -, aos ignominiosos machos que põem ovos de chocolate diet a cada Páscoa, e aos coelhinhos da caçada de Napoleão, conforme o link que a autora ofereceu, ao final de seu texto.

Mas Zoraya, afinal de contas esses demônios eram coelhos ou raposas? Esse narrador sociopata deve ter exagerado nas doses de defensivos agrícolas. Acho que ele não estava discernindo mais nada.
Anônimo disse…
Essa crônica está estranha. Espero que você resolva esse "balaio de gatos" ou melhor de coelhos, cachorros, galinhas, etc..., no próximo capítulo.
Anônimo disse…
Olho por olho, dente por dente e a gente dá o que tem... Ira por ira... Assim caminha a humanidade.
whisner disse…
São coelhos alienígenas, não é possível! Ou raposas em pele de coelhos...

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