A BONEQUINHA QUE NÃO SOU >> Ana Raja

 


Quando estamos em uma cidade a passeio, nossos olhos captam as imagens detalhadamente. Estamos conectados com o momento, suscetíveis aos cheiros, às cores, aos sons, aos toques e tudo nos atravessa de uma maneira diferente.

Explorar os lugares usando o transporte público é muito bacana, saímos do percurso turístico e temos a chance de conhecer a alma da cidade. Assim procuro me locomover em minhas viagens, e para ser sincera, só vejo vantagens. 

As descobertas de ruas fora da rota, restaurantes surpresas em esquinas esquecidas, uma cafeteria florida, uma loja com preços incríveis, muros pintados por moradores do bairro, realmente são ingredientes a mais.

Minha última viagem a São Paulo me fez refletir sobre o conteúdo de um informativo do metrô, veiculado dentro dos trens. Por meio de um circuito interno de vídeo, os passageiros assistem da cotação do dólar às imagens de pessoas desaparecidas.

Vou ajudá-los a visualizar o meu incômodo.

Bem caricato, para um informativo de segurança e boa convivência — talvez com o intuito de ser “engraçadinho” —, escolheram desenhos de bonecos animados e os contextualizaram em cenas comuns ao cenário das estações do metrô. O objetivo era alertar para o uso correto das escadas rolantes. 

Vamos à cena:

Um “bonequinho” desce as escadas, as mãos no corrimão, indicando a maneira de fazê-lo. Corta para a “bonequinha” se dirigindo à escada. A figura dele é simples, somente o desenho do personagem, sem adereços. Já a dela: maquiada, de salto alto, vestido curto. Com um pacote nas mãos, distraída – na verdade, meio tonta –, seu andar “rebolativo” marca a cadência da sua aproximação. Assim que coloca os pés, mais ou menos no terceiro degrau, ela se desequilibra e sai rolando escada abaixo, atingindo o “bonequinho” no final da escada, provocando um acidente.

Prestava atenção em tudo que era exibido naquela tela: resultado dos jogos do campeonato, empresas que tiram o nome dos endividados do SPC, dicas de cultura, saúde e por aí vai. 

Sobre o informativo dos bonecos, se a ideia era chamar a atenção para a segurança, a falha fica por conta da caracterização da figura feminina. A pluralidade de pessoas que frequentam o metrô é imensa. Não seria melhor pensar em pessoas? Não me identifico com aquela “bonequinha”. Eu preciso me ver inserida nas situações em que as cenas são apresentadas, e para isso é desnecessário a caracterização do gênero. Por favor, não vamos voltar ao tempo em que os homens, nos seus escritos, definiam as mulheres; e às mulheres era permitido escrever somente receitas. 

Outro dia, li em um livro que as coisas quando nos incomodam podem ser um incômodo coletivo e por isso devemos escrever sobre elas. Feito.

                        

Imagem de Marielou Lolilop por Pixabay

anaraja.com.br



Comentários

pinceldecronica disse…
Muito verdadeiro Ana. Os estereótipos femininos continuam presentes na nossa propaganda e temos que falar disso, incomoda muito!
Anônimo disse…
Realmente Ana, se o propósito do anúncio era 'segurança' por que uma mulher de salto? Numa metrópole como São Paulo poderia ser uma multidão mexendo no 'celular'como forma de distração. Mas isso mostra uma sociedade misógina.
Luciana Giacomazzo disse…
Amei Ana ❤️
Zoraya Cesar disse…
Nosso incômodo pode ser um incômodo coletivo e por isso devemos falar dele. Interessante observação. Realmente, falar do que nos incomoda pode ter duas vias: percebermos que estamos nos incomodando por pouco ou ajudarmos outras pessoas a ter voz, ou a ter coragem de se manifestar tb, e, aí o q era pessoal passa a ser de todos, e isso pode gerar movimentos. Mais uma vez, bem-vinda, Ana.
Soraya Jordão disse…
Sorte a nossa poder contar com seu olhar sensível e escrita precisa. Parabéns, Ana Raja!

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