IMODESTOS >> Carla Dias


A impaciência estampada no olhar. Não sente vergonha de alimentá-la com ações que vão além da comunicação não verbal liberada para uso no escritório. Seus subalternos já entenderam a dinâmica e saber disso atiça o prazer nele.

Aprecia tudo o que se ergue e se coloca, com elegância, entre ele e as outras criaturas, pessoas e outros animais. Apesar de o acharem um bárbaro, as irmãs sorriem quando ele chega em casa. Antes mesmo de alcançar o sofá, uma lhe entrega um copo com dose caprichada de uísque, e a outra, com paciência inabalável, faz as perguntas geradoras de bem-estar: resolveu os problemas com o fornecedor? Sim. Recebeu o bônus prometido? Claro, trabalhei para isso. Como foi a reunião com os responsáveis pelos novos projetos? Graças a mim, um sucesso.

Há algo de mambembe na extravagância do ego dos que se permitem pavonear para manter distância do outro e se declararem indispensáveis a ele; os que se gabam de suas conquistas na social dos seus bairros exclusivos ou nos arredores das estações de trem. É a extravagância do ego a fartar de prazer quem o gera, sustenta, lida com ele como se fossem parceiros de uma batalha vital para todos os envolvidos.

As irmãs passam o dia a elaborar formas de tirá-lo de cena. Não suportam o suor que escorre de sua testa, depois de uma caminhada do elevador, no fundo do corredor, até o apartamento. Sentem nojo de tudo o que ele representa e é, mas não saberiam viver de outra forma, sem o cuidado e a segurança que ele oferece aos desejos delas, alvos de seus agradecimentos mirrados durante as orações diárias, entre um drinque e um apanhado de maledicências.

Não querem se despir de suas míseras conquistas: vista para a praia, espaço e tempo para se assanharem com o fazer nada. As contravenções - que chamam de esperteza - não são notadas pelo irmão, aquele que “pensa” que manda no reino.

O reino é um apartamento herdado de um tio que elas nem conheciam. A morte dele se tornou a boa sorte delas. Ignoram as almofadas de capas rasgadas, as cortinas puídas. O vazamento na pia do banheiro, a porta da varanda desprendida do batente. Ignoram que o reino se tornou o resumo de um abandono. 

Todos os dias, ele vai para a empresa, que também herdou do tio, e se nega a atender clientes ou colaboradores responsáveis pelo funcionamento do estabelecimento. Tranca-se no escritório, perde-se em pequenos luxos e alguns drinques, até o fim do expediente. O que antes movia a empresa pelo seu valor, hoje vale tão menos, que até mesmo ele, que não faz ideia do que se trata o negócio,  já entendeu que melhor é aproveitar até quando for possível.

Enquanto ele aproveita as raspas do fim, elas planejam um jeito de ficar com tudo e elaboram projetos futuros que serão soterrados por uma ordem de despejo a ser executada. 

Imagem © Grande Vanitas: Alegoria das Vaidades do Mundo (1663) por Pieter Boel; Pieter Boel, domínio público, via Wikimedia Commons

carladias.com


Comentários

whisner disse…
Teatro de aparências, tão típico da sociedade. Em poucas linhas você destrinchou os segredos de uma família convencional. Gostei.

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