SOL SOMBRIO - PARTE IV: A DANÇA DA MORTE>>> Nádia Coldebella

A lua minguava no céu, deixando uma tênue e nervosa luz perpassar pelas frestas das nuvens. A chuva há pouco havia cessado, mas as poças d'água ainda acumulavam-se na estrada de terra. Refletiam a luz dos faróis de alguns carros vagarosos, que insensivelmente se lançavam sobre elas, destruindo a efêmera paz que pareciam ter encontrado. Eles subiam a íngreme estrada, cercada de arbustos e árvores tropicais ainda em estado bruto, que terminava na parte mais alta da colina. Bem no topo, erguia-se uma construção toda feita de pedras revestidas por uma textura fina de calcário branco, que, agora, molhada pela chuva, resplandecia a parca luz da lua. 

O arquiteto esmerara-se para imprimir na construção um inconfundível estilo gótico. E o fez com maestria. As colunas imbricadas e as paredes altíssimas encontravam-se no ponto mais alto, como se fossem orações feitas em profunda reverência na tentativa de elevar ao Criador as almas que  passariam, com o inegável intento de pecar, pelas portas frontais, altas e pesadas. Também brancas, eram ornadas por vitrais ricamente decorados, que se dispunham logo acima. Teria havido nelas uma certa sobriedade se não fossem as grandes maçanetas banhadas a ouro, luxuriosas e excessivamente brilhantes. Gárgulas brancas, do tamanho de um homem, estavam dispostas, uma em cada lado, vigiando a entrada dos que subiam a ampla escadaria que se estendia a frente. Para acessá-las, os convidados precisavam contornar a casa, pois a fachada frontal havia sido disposta de forma a confrontar o imenso vazio que indicava o término abrupto da colina onde a casa fora construída.

O Negro, vestido com a sua casaca preta mais refinada  e ostentando uma cartola da mesma cor, perfeitamente gótica, era uma visão impressionante para o restante dos convidados. Ele caminhou até a frente da casa, batendo ritmadamente sua bengala nas pedras brancas inacreditavelmente limpas que também cobriam o chão. Porém, não subiu as escadarias. Ao invés disso, caminhou até a borda da colina e se deparou com uma singela cerca de madeira na altura de seus joelhos, cuja intenção, fadada ao fracasso, era proteger qualquer transeunte de uma queda descomunal. Ele olhou para baixo e viu o oceano, na sua forma mais selvagem, esculpindo a rocha com o vai e vem das ondas. Sentiu-se impelido a abrir as majestosas asas e planar sobre a imensidão convidativa, mas conteve-se quando ouviu os passos pesados e arrastados do Anjo Albino.

Hyalin, como sempre, trajara-se todo de branco. Também usava uma casaca feita com esmero por mãos delicadas, porém o brilho dos ornamentos nas golas deixavam-no com uma aparência retrô. Além da cartola e da bengala que trazia quase junto ao corpo, O Negro percebeu em seu bolso um relógio cuja corrente dourada balançava a cada passo dado. Ele entrou, tentando, em vão, confundir-se aos convidados comuns. Morus revirou os olhos e respirou fundo. Ajeitou a casaca e a cartola com uma certa reverência, elevou a bengala para perto do corpo e riu-se do repentino refinamento. À passos lentos, seguiu o irmão e adentrou o salão.



A música de elevador tocava  suavemente e as pessoas pareciam muito educadas, falando baixo e movimentando-se contidamente. Os risos que ecoavam no ar eram das moças mais libertinas, encantadas pelos gestos excessivos e pelo eloquente palavrear do Branco. Morus quase sentiu pena dele. Ele tentava desesperadamente misturar-se àquela gente, mas não passava de uma aberração grotesca e hipócrita, uma criatura de carisma fingido. 

Um perfume familiar, mas exótico, chegou-lhe as narinas. Tinha notas amadeiradas e adocicadas, mas também cheirava suor, saliva e sensualidade. Ele despertou em Morus lembranças antigas, prazerosas e perturbadoras, das quais foi impiedosamente arrancado quando uma mão muito delicada, de dedos finos e compridos ornados por longas unhas pintadas num tom de cobre, tocou de leve o seu braço.

Os olhos negros do anjo encontraram outros, de puro âmbar, prescrutando sua face. A mulher que os possuía era uma criatura magnífica. Quase tão alta quanto ele, ela tinha a pele levemente dourada pelo sol e os cabelos longos, fartos e  acobreados, que desciam numa intensa cascata sobre seus ombros nus. Usava um vestido longo, feito de um tecido muito leve e etéreo, cuja cor, dependendo do tipo de luz que incidia sobre ele, poderia variar entre o dourado mais brilhante e o cobre mais intenso. Nos pés trazia sandálias douradas, trançadas até os joelhos à moda grega, de forma que apareciam entre as profundas fendas do vestido quando ela se movia. 

- Chalc'oz! - os lábios do anjo entreabriram apenas levemente, suspirando a estranha palavra que era o nome daquela mulher. O ar exalado pela negra boca carnuda tocou-lhe a face e ela rapidamente corou. Suas pupilas dilataram-se, deixando seus olhos quase como os do Negro. Um leve arrepio percorreu o pescoço do anjo quando ela estendeu uma das mãos pequenas e delicadas e tocou seu rosto - Onde você estava? - a voz dele saiu baixa e rouca.

Ela sorriu, um sorriso largo de dentes muito brancos - Aqui, sempre... - e comprimiu a mão junto ao rosto dele, para, em seguida, deslizá-la entre seus cabelos. Ele sentiu o arrepio descer pela espinha, enquanto uma bola de calor instalava-se em seu estômago. O sorriso dela alargou-se um pouco mais, maliciosamente, porém logo se tornou um gemido abafado quando O Negro passou vigorosamente a mão pela sua cintura e a conduziu para a pista de dança.


Ele pode sentir suas asas avermelhadas inquietarem-se por baixo da roupa. Trouxe-a para perto e manteve-a firmemente rente ao seu corpo quando o blues começou a tocar. Ela arquejava e estava quente. Enquanto ele a embalava vagarosamente pelo salão de ladrilhos xadrez, ao som de The Thrill is Gone, sentiu-a estremecer e não pode evitar o próprio estremecimento provocado pela densa corrente elétrica que perpassou seus corpos. Ele abaixou a cabeça e roçou-lhe o pescoço com o nariz, inebriado pelo perfume que exalava dela. Voltou a olhá-la. Ela estava entregue ao ritmo da música, perdida na profundidade dos seus olhos negros. Ele espalmou a mão em suas costas e aconchegou sua coxa entre as coxas dela - ela prontamente se aninhou. Com o corpo levemente envergado, O Negro encaixou ainda mais seus quadris nos dela e conduziu-a num movimento circular muito lento e sensual. 

Ele então subiu a mão pelas suas costas. Com as pontas dos dedos acariciou seus ombros descobertos e seguiu a linha do braço até a ponta dos dedos, deixando, no caminho, uma pele desesperada pelo toque e repleta de pelos eriçados. Tomou-a pela mão e a conduziu num rodopio, mas, em meio a volta, ela parou, tensa e hirta. O olhar adquirira uma expressão grave e já não se fixava em Morus, mas em Hyalin. O Negro ainda tentou dissuadi-la, mas ela se desvencilhou de seus braços e, em passos decididos caminhou até o Branco que, ao vê-la, endireitou o corpo e permaneceu numa quietude sepulcral.

Morus seguiu-a com os olhos e sentiu seu perfume intensificar-se, hipnotizando todos os comuns que estavam nas proximidades. Ela aproximou-se do Branco e, sem nada dizer, estendeu a mão direita e envolveu o pescoço dele, acariciando de baixo para cima, até a base da nuca, para em seguida puxar de leve seus cabelos. Ele fechou os olhos enquanto uma intensa onda de calor desceu da espinha à virilha. Ela levou uma das mãos dele à sua cintura quando Another Night to Cry começou a tocar. Embalando-o no ritmo da música, ela colocou languidamente a outra mão por dentro do casaco e a estendeu até as costas, descendo os dedos pela coluna vertebral. Hyalen se contorceu de leve, quase inconsciente de prazer, pendendo a cabeça para traz e fechando os olhos com mais força.

Ela deslizou a mão, que antes estava no pescoço, para o peito do anjo e parou na linha da cintura, procurando um caminho por entre os botões prateados da camisa. Ao encontrar, permitiu que os seus dedos quentes roçassem levemente a pele fria e albina da barriga. A respiração do Branco tornou-se mais pausada e densa. Quando ela colocou a mão toda por dentro da camisa e a desceu até o fecho do cinto, ele gemeu. A mulher deslizou a mão que acariciava a coluna para o osso sacro e pode sentir, perto do pulso, o volume do inseparável caderno de couro preto que Hyalen havia guardado num bolso secreto do casaco. Ela aproximou-se mais, encostando sua pélvis nos quadris nervosos do Albino e deixando que o bico rijo de seus seios, cobertos apenas pelo fino tecido do vestido, encostassem em sua mão branca, gelada e trêmula. Ele exalou todo o ar que pode e afundou a cabeça nos cabelos fartos de Chalc'oz, completamente embriagado com o intenso perfume que exalava dela. Ela mergulhou a mão que estava no cinto alguns centímetros calça adentro. Em seguida, levantou um pouco a cabeça e mordiscou o lóbulo das suas orelhas pálidas.

-  Oi - disse num sussurro quente que fez o anjo trepidar tal qual chama de vela, enquanto apanhava, habilmente, o caderno do bolso secreto e o atirava aos pés de Morus.

Depois retirou lentamente a mão do cinto e subiu-a mais uma vez até a barriga albina, sentindo o sangue frio que fluía rapidamente sob a pele. Hyalen colocou uma das mãos na nuca da mulher, agarrando-a firmemente pelos cabelos. A outra ele afundou em suas costas, prendendo entre os dedos as asas acobreadas recolhidas sob o vestido. Ela sentiu-se como um pássaro, imobilizado pelas mãos de um homem. O anjo sorriu e seu rosto iluminou-se macabramente. 

- Vermelha... - Ele disse e sua voz era profundamente aterradora. Os olhos dele mergulharam nos dela e ela nada viu, apenas sentiu o vazio branco e fantasmagórico da mais profunda solidão. Mesmo assim, foi sua vez de gemer, de terror e prazer intenso, e entreabrir os lábios, para receber neles a boca do Anjo Albino.  

Ele tocou os lábios dela apenas de leve e todo o calor foi afugentado de seu corpo. Ela sorriu para ele enquanto percebia seu coração congelar, enquanto via a vida se esvair tal qual água derramada pelo chão preto e branco.

Morus atendeu ao sinal feito por Chalc'oz  pouco antes de a última nota da canção ser entoada. Recolhera o livro do chão e correra porta a fora, até a beira do penhasco. Viu o brilho tênue da casa se dissipar e, chorando, abriu as asas e jogou-se na vastidão negra e silenciosa do céu.



Continua em 21/04/2022

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Leia as outras partes aqui:

Parte 01Os irmãos.

Parte 02: O ajoelhado.

Parte 03: O contrato.


Ouça a trilha sonora aqui: 

The Thrill is Gone - B. B.King.

Another Night to Cry - Lonnie Johnson





Comentários

sergio geia disse…
Uau! Essa cena da dança do anjos foi quente, hein?
Zoraya Cesar disse…
Nadia, Nadia, NADIAAAAAAA QUE ESPETÁCULO de descrição, de encadeamento, de suspense, de TUDO. E o mistério? A gente TEM de transformar isso num filme. Está um escândalo de bom. Perdoadíssima por dividir em capítulos intermináveis essa saga absurda de boa. Embora o ritmo fosse o blues, eu os vi num tango mortal. Amei demais.
Albir disse…
Sempre acho que esses dois vão me encontrar acorrentado em alguma masmorra. E sonho com uma morte rápida.

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