O CÃO E O ESPANTALHO 1ª parte >> Zoraya Cesar


Sei que estou sendo seguido. Sei que algo está perto de mim. Não vejo nada, mas eu simplesmente sei. 

Tudo começou com aquele abominável cachorro pulguento. Ou melhor, antes. Começou antes, quando aquela gente estranha se mudou para a vizinhança. Não tenho nada contra gente estranha que não tenha também contra gente comum. Os vizinhos não gostam de passar na frente da minha casa, meus colegas de trabalho me olham ressabiados e não me chamam para as festas. Mantenho a casa sempre fechada, me visto de preto e ando pelo quintal jogando sal, para afastar os curiosos. Funciona. Todos, de certa maneira, acham que lido com magia negra. Claro que não tenho essas crendices, mas gosto que pensem assim. Mantenho um espantalho horrendo no quintal, mais assustador que a face de Belzebu. (Vocês estão ouvindo isso? Esse som, como se alguém estivesse batendo na janela?). Mas deixem-me contar do início.

Eles chegaram num automóvel que era uma verdadeira carroça, todo esbodegado, parecia que tinha sido batido, amassado, afogado, incinerado. Não sei como continuava rodando. Era uma família de quatro: o pai, a mãe, uma criança remelenta, a avó – parecia uma megera centenária - e um cachorro de aparência lupina, o pelo puído e esburacado, mais velho que a avó, e mais acabado que o carro. 

Elvira, a Rainha das Trevas

Instalaram-se na casa ao lado da minha, só para perturbar a minha paz. Os pais da criança saíam cedo e só voltavam tarde. Ele, um gigante com cara de papalvo, ia carregado de quinquilharias que vendia ou trocava por outras. Ela trazia sempre consigo uma bolsa de veludo verde que envolvia algo como uma bola, e uma espécie de tenda portátil. Se eu tivesse senso de humor diria que ela era uma versão mais feia da Elvira, a Rainha das Trevas. Mas não tenho senso de humor. 

A velha não tinha dentes, e vendia bolos que, para mim, exalavam um terrível cheiro de terra mofada; mas os vizinhos deviam sofrer de anosmia, pois não só compravam como encomendavam aquela gororoba incomestível. Ela e o cachorro pareciam ter uma estranha sintonia e eu sabia que precisava ter cuidado com eles. (Está ouvindo agora? Parece que tem algo farejando por aqui)

A criança corria de cima pra baixo, e em pouco tempo já estava familiarizada com os vizinhos. Da única vez em que ela se aproximou da minha casa, porém, a avó deu um grito tão forte, que ribombou nas janelas. A criança voltou, obediente e assustada. A velha cochichou algo no ouvido dela e olhou com ódio para mim. Nossos olhares se cruzaram e naquele momento eu tive certeza que, de alguma forma, ela sabia...

A partir daquela dia, toda tarde sentia aquele detestável cheiro de incenso de sálvia estragada enquanto ouvia a velha bater um tambor indígena, balbuciando uns mantras ininteligíveis. O cachorro rondava meu quintal, rosnando em direção ao meu espantalho demoníaco durante o dia. Porque, à noite, o comportamento dele mudava. 

O perebento sentava-se de frente para o meu alpendre e latia, gania, latia, gania por uma enormidade de tempo até a madrugada ou a velha chegarem, o que viesse primeiro. Velha desgraçada, porque demorava tanto? 

Fiz uma discreta enquete entre os que moravam perto (foi um pouco difícil, afinal, eu não gostava deles nem eles de mim) e todos foram unânimes: a noite continuava silenciosa como sempre. Cretinos. Aposto que estavam mancomunados com a velha. 

Eu estava desassossegado. Pressentia que o cachorro não me deixaria em paz.

Na madrugada em que aquele lazarento começou a escavucar a terra em volta, acionei o mecanismo que fazia o espantalho girar ruidosamente no seu eixo. Funcionou. O purulento do cachorro parou de cavar, afastou-se andando para trás, sem perder o espantalho de vista. E como toda noite, sentou-se de frente para minha casa, meu quintal, o espantalho. Mas, dessa vez, em vez de ganidos e latidos, ele uivou, uivou alto e desconsoladamente, como se chorasse. Estranhamente, a velha não o chamou, deixando meus nervos em frangalhos até o amanhecer. 

Novamente sondei os vizinhos. Novamente em vão. Ninguém ouvira nada. 

Eu não sabia o que estava acontecendo, mas sabia uma coisa: não podia permitir que aquele cachorro dos infernos cavasse a terra em volta do meu espantalho. (Estão ouvindo? Olha ele ganindo de novo, o desinfeliz)

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Continua dia 13 de maio. 

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Foto de Elvira, a Rainha das Trevas
https://www.flickr.com/photos/thomashawk/25202440820

Elvira, protagonista do filme
https://pt.wikipedia.org/wiki/Elvira,_Mistress_of_the_Dark

Comentários

Erica disse…
Esperando ansiosamente para saber o que a velha sabia...
Marcio disse…
Já estou morrendo de medo. Acho que não consigo dormir até 13 de maio (no mínimo).
Agora, basta essa primeira parte do texto para sacar que os preços dos imóveis nesse bairro estãp bastante depreciados.
Que fauna esquisita que frequenta esse lugar...
branco disse…
" Se eu tivesse senso de humor diria que ela era uma versão mais feia da Elvira, a Rainha das Trevas. Mas não tenho senso de humor."... digna frase de Rorschach escrita por Alan Moore. Encaixe de ideias e suspense em um conto excepcionalmente construído.
sergio geia disse…
Hum, Zô, neste você foi certeira. Deixou-nos com aquela vontade de mais, de muito mais. Aí tem. E essa narradora (ou narrador) é bastante suspeita (o), não?
Albir disse…
Que saudades do padre natalino e da velha senhora apaixonada pelo encarregado de armazém!
Mas cá estamos de volta aos espantalhos vivos e aos cães possuídos. É a vida, né? Ou é a morte, sei lá!
Alfonsina disse…
Que gostoso ler seu texto, reencontrar seus adjetivos deliciosos, seus personagens ao mês tempo típicos da sua escrita, mas cada um com sua particularidade. Já estou imaginando que é o morto enterrado no quintal 😅 aguardo ansiosa a continuação!

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