ONDE CABE A ALEGRIA >> Carla Dias >>


Alegria deslavada é essa, de atenuar lonjuras, pacificar inquietações, embarcar nas nuances de comédia romântica dos anos trinta. É alegria própria dos colecionadores de esperança, que mesmo diante de tragédias, não se curvam, como se ser esperançoso fosse profissão delegada pelos deuses.

Alegria boba, injustificada, que entrega sorrisos à toa ao florista, ao jornaleiro, ao vendedor ambulante, à mulher emburrada, ao menino travesso, ao homem do tempo, ao colecionador de saudade, a todos os passantes, e até mesmo aos invisíveis, eles sempre escondidos atrás do medo de serem escolhidos para frequentar vitrines.

Alegria é um tipo de dança, que a sentimos borboletear no estômago, sapatear nos pensamentos. Não há consumidor de alegria, apenas o assumidor, pois ela nos coloca na posição de nos tornarmos, ainda que somente durante a sua duração, bobos da corte. Em estado de seriedade, rareados de alegria, essa ideia nos mete medo.

Há alegria em coisas cotidianas, que passam despercebidas ao mergulharmos em uma rotina severa. Reaprendermos a enxergá-las é reavermos o paladar emocional. Às vezes, até ultrapassamos o limite dessa simplicidade, e daí que tudo fica mais suave: pés descalços no piso frio da cozinha, abraço de primo distante, com quem dividimos infância e ao qual oferecemos esquecimento na maioridade. Pintar quadro sem ter a menor noção sobre arte, criando aquela imagem que lhe atiçará o divertimento quando olhar para ela. Escutar vento. Ler placas. Adaptar-se à previsão do tempo vigente, com o assentimento de que ela pode estar equivocada.

Pode chover em dia que é para ser de estiagem.

Podemos nos equivocar, como a previsão do tempo.

Tem alegria que arrepia pelo encontro: mãos, barrigas, pernas, bocas. Dessas que nos tiram o sono, fazendo travesseiro se tornar confidente de desejos verbalizados somente uma vez, em momento de nudez de alma sussurrando sensações ao corpo. Amor sem alegria é um equívoco, pois como seriam sustentadas as gargalhadas intrusas, as que fogem da gente em momentos que deveríamos nos render aos dramas? Mas que alegria também é dramática, que faz abraço durar um sem tempo, inspira declarações de amor irreverentes, dá trela ao improviso – digno do jazz – quando necessitamos de companhia.

Alegria é o que nos ajuda a suportar as tragédias. E pede pelo exercício, que nem sempre sabemos aceitá-la, ou mesmo reconhecê-la. Como agora, neste instante em que lhe escrevo, quando me vem esse silêncio.

Que alegria cabe nesse momento?




Imagem: Cena do filme "Aconteceu Naquela Noite" (It Happened One Night/1934), de Frank Capra.

Comentários

Anabela Jardim disse…
Alegria...alegrias! Todo mundo quer ter algumas. E na busca pelo estado de estar alegre, se perdem na busca daquilo que acham difícil.
Que belo palavreado de alegrias, Carla! :)
Zoraya disse…
Que primor, Carla, seu lirismo em alta, como sempre.
Carla Dias disse…
Anabela... O fato é que para ser feliz é preciso coragem.

Eduardo... Obrigada!

Zoraya... Obrigada!

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