ENTRE O PORTÃO DA GARAGEM E O SOFÁ DA SALA >> Sílvia Tibo



Nunca fui o tipo pessimista. Aquela espécie de gente abominável, que só enxerga nuvens no céu, por mais claro que esteja o dia. 

Ao contrário, quem me conhece um pouco sabe que reclamar das coisas não é meu passatempo preferido. A despeito de suas tortuosidades, penso que a vida tem sempre um lado bom. A gente é que, na pressa, nem sempre consegue enxergar. 

De uns tempos pra cá, porém, está cada vez mais difícil me manter fiel a essa filosofia do “tudo bem”. À medida em que o medo entra pela porta, parece que a fé em dias melhores tem saído pela janela, sentindo que já não há mais lugar pra ela. 

Há pouco mais de duas semanas, mataram um rapaz na porta da academia que frequentei durante meses, há poucas ruas do apartamento onde morei por mais de um ano, no momento em que ele tirava o carro da vaga onde, certamente, também já estacionei o meu. 

Soube, dias depois, que um conhecido fora vítima de roubo em um dos semáforos que dá acesso ao meu bairro, quando voltava do trabalho, numa tarde qualquer. Levaram celular, carteira e relógio, além de sua dignidade e sua paz de espírito. Por sorte, deixaram-no vivo para concluir o percurso até sua casa, bem semelhante, aliás, ao que eu costumava fazer. 

O problema da academia foi fácil de resolver. Aderi à concorrente, que oferece aos alunos estacionamento e vigia. Encontrei, também, uma nova opção de acesso ao bairro. Gastando o dobro do tempo (e da gasolina), vou pra casa sem passar pelo malfadado semáforo, na ilusão de que estou segura. Como se não existissem tantos outros sinais vermelhos no meu caminho. 

Mas, afinal, o que é a vida sem um pouco de ilusão?

É assim mesmo que a coisa funciona. Num dia, muda-se de academia. No outro, evita-se passar por esta ou aquela rua, dizendo pra si mesmo que não custa nada rever conceitos e que, aliás, a novidade é o tempero da vida!

De repente, percebe-se que o ideal mesmo é ficar dentro de casa, na própria zona de conforto. Pra que jantar fora quando se tem disposição e espaço suficientes para receber os amigos?

Liberdade de ir e vir? Só se for entre o portão da garagem e o sofá da sala. Até o momento em que invadem, também, a nossa sala. Mas aí, sejamos realistas, já nem importa mais que nos tirem a vida. Afinal, já a perdemos faz tempo, no mesmo instante em que nos tiraram o direito de sair de casa. 

Numa sociedade que se diz (ou, ao menos, pretende ser) livre, justa e solidária, tão essencial quanto respirar e comer é o direito de ir a qualquer lugar, assim como a certeza de poder dali retornar. 

Comentários

Zoraya disse…
Na marca, Sílvia.Enquanto nos enjaulamos em casa e saímos nas sombras pro nefasto nao nos ver, o pessoal faz fila pra comprar o aparelho da maçã e faz fila pra frequentar festas nas quais se bebe do momento q chega ao que sai. E nada de passeatas pelo sacrossanto direito d ir e vir.
albir disse…
Pois é, Silvia, já nem podemos dizer que não é conosco. Todos temos histórias de vítimas à nossa volta.
Juraci disse…
Filhota,
parabéns por mais um excelente texto!
Estamos todos inseguros e sem perspectiva de que algo venha a ser feito para resolver o problema.
Bjin
Pai
Unknown disse…
Zô, Albir, pai!
Obrigada pela leitura!
E que nunca nos falte a fé em dias melhores...
Beijos
Unknown disse…
Silvinha, mais uma vez você escreveu com propriedade sobre um assunto do dia a dia que incomoda e atormenta todos nós simples mortais. Viver em um país que o direito de ir e vir de forma segura se limita ao portão do prédio até o sofá da sua sala é, no mínimo, frustrante.
Lucas Romualdo dos Santos disse…
Silvia, por mais que queiramos achar tudo as mil maravilhas, o mundo é muito mais cinza do que gostaríamos. O Rappa já cantava sobre este tema que escreveu a mais de uma década, lembra? O problema não é novo.
Só que, enquanto não chega perto de nós, vamos cantando a música, e não agimos para mudá-la.
Não sei se todos os povos são assim, mas nós brasileiros temos o péssimo hábito de nos acomodarmos, de não nos importarmos, enquanto o problema não nos atingir.
Essa falha, junto à passividade, cada dia que passa, torna patente nossa incapacidade de lutar por um direito que é dos mais fundamentais. Como você escreveu,sem a liberdade
de ir e vir sem medo "já nem importa mais que nos tirem a vida. já nem importa mais que nos tirem a vida. Afinal, já a perdemos faz tempo, no mesmo instante em que nos tiraram o direito de sair de casa."
E complemento. Não só tiraram o direito de sair de casa, mas também o direito de fazer o que é certo, o que é moral, com a de que todos tem culpa, que ninguém é inocente.
Dolores disse…
Olá Sílvia,é muito gratificante ler o que escreve.Pois ás vezes temos até medo de expor nossas idéias.Sentindo á cada dia mais insegurança,ficamos á mercê de uma segurança que na verdade só existe nos discursos políticos.Precisamos realmente deixar o medo de falar,tomar conta do nossos sentimentos.Bjos.

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