O ENIGMA DA CEBOLA E OUTRAS BABOSEIRAS METAFÍSICAS >>> NADIA COLDEBELLA

 



Me preparei a semana toda para estudar camadas. Chama estratigrafia. Ou análise estratificada. Ou, chiquerrimamente falando, hermenêutica das camadas. Estudei até dar lágrimas nos olhos.

Começo pelas camadas da pessoa, o que é muito condizente com o trabalho de uma psicóloga. Mas quero deixar claro que a pessoa a quem eu disseco é fictícia. Eu não conheço. Apenas a fatiei na minha imaginação quando a submeti entre as lâminas do meu microscópio mental. Sem sangue, viu Albir?

Então, a primeira camada deste vulgo humano todo mundo já viu, mas ele resolveu cobrir de maquiagem, educação e polidez. Tudo falso, mas eficientemente forma uma fina película que todos fingem não existir.  O fingimento é necessário para a eficácia da película.

Mais para dentro, há outra camada bem confusa, as vezes vaga, as vezes fibrosa. São como pássaros barulhentos forçados, sem sucesso, a ficar quietos. O vulgo humano entende alguns, outros nem tenta, outros nem admite que tem. Essa camada não interessa a cientista aqui.

Escarafunchando mais um pouco, encontrei uma camadinha leviana, formada por um tipo de minhoquinha que aparece de repente, incomoda bastante e vai embora em noventa segundos se a pessoa não ficar ruminando. Essa camada leviana também é um tipo de película, nitidamente reconhecida no mundo externo. Ela serve como um disfarce, um desvio para que o humano não preste atenção no embaralhamento que vem a seguir.

Não, caro leitor, essa muvuca não é tricô, nem crochê. Está mais para uma cesta de novelos de lã que mil gatos brincaram e morderam, deixando de herança tantos nós que nem Nossa Senhora Desatadora de Nós desata. Ali dentro moram os monstrinhos anti sociais responsáveis pelo caos da existência desse humano. Eu conheço esse pessoal muito bem, vivem me incomodando no trabalho, então não quero papo com eles agora.

Ajusto o microscópio e mergulho no emaranhado. Do outro lado encontro um muro.  Ou é uma camada rochosa? Estou estratigraficando? Está pichada com garatujas. Há também inscrições em uma língua desconhecida, quase hieróglifos, praticamente impressas a raio laser. Deduzo, pela profundidade e horror que me causam, que foram impressas em momentos extremos da existência. É uma paredinha sólida, difícil de ultrapassar, mas água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Então cavoco a pedra um pouco e encontro uma camada gosmenta. É um caldo primordial. Efervescente como a lava de um vulcão que vai explodir logo logo. Mas o que tem dentro?

Me livro do ser humano fatiado e coloco o tempo sob a lente do meu microscópio. De cara, percebo duas camadonas, bem grossas. A mais externa é meio prolixa, meio espiralada, vai e volta, não me interessa, se eu quiser leio um livro e descubro. Quero a outra.

Essa é uma camada estranha. É formada por uma série de entrelaçamentos que acompanham a vida daquele humano. Só que a primeira parte da camada tenta me engambelar com um papinho filosófico de que a transparência das camadas da infância desaparece na vida adulta e blábláblá. É verdade, eu sei, mas eca, todo mundo sabe. Estou mais interessada no que está por baixo disso.

Depois de uma turbinada no microscópio, consigo ver. Além do aqui e agora da infância, da pressa da adolescência e da falta de tempo da juventude, encontro uma camada translúcida, dominada por reflexos do que foi e não pode ser mais. O pobre do tempo tenta se reinventar nessa camada, se repetir e se repetir e se repetir, mas tudo o que produz é nostalgia e dor. E um sentimento de urgência que apesar de urgente não tem pressa, de quem sabe que o tempo está acabando, então é melhor ir devagar e saborear bem. Uma tática infalível para aproveitar a melhor comida do almoço. Igual a dar o último mergulho na piscina. Ou suspirar no último dia de férias. Ou se despedir do amor da praia que não sobe a serra.

Eu, porém, encontrei a resposta sobre o que tem por trás disso e sobre o que tem dentro da sopa primordial em uma cebola. Nem ajustei meu microscópio, dei uma googlada mesmo. Literalmente, uma cebola é composta por várias camadas concêntricas, que são folhas modificadas chamadas de escamas. A parte mais externa, chamada casca, tem função de proteger. As partes do meio, carnudas e ardentes – experimenta ficar de olho nelas quando corta, para você ver! - armazenam nutrientes e água.  Aí vem o núcleo, que nem um núcleo é. Ele é um ponto onde as camadas se encontram, mas não é sólido, não tem um significado, nem uma essência. É praticamente um vazio.

Os resultados da minha análise estratificada me assustaram, pois me mostraram o quanto sou pessimista. A resposta é que, sob a última camada do tempo ou dentro do caldo primordial, existe um ponto onde tudo se encontra, mas não há nada ali. É vazio.

Se é tudo vazio, qual o sentido desse trabalho todo que a gente anda tendo na vida?

Fui perguntar para uma IA. Ela acha que a cebola “nos mostra que não somos definidos por um único centro, mas sim pela combinação de todas as experiências e emoções que vivemos e que depois de retiradas todas as nossas camadas, o que resta é a liberdade de nos reinventarmos e encontrarmos novos significados”. 

Essa IA nem é gente, mas é mais otimista do que eu. Só que, para mim, isso é conversinha para boi dormir. No momento, eu continuo pensando que tudo é vazio.

Comentários

Jander Minesso disse…
Tive uma sensação curiosa de não entender nada e entender tudo lendo seu texto. Será que jogo na IA pra ver se ela me ajuda com isso?
André Ferrer disse…
Também conhecida como Allium cepa, a cebola foi objeto de uma das minhas primeiras aulas de Citologia na faculdade de Farmácia. Foi nos anos de 1990 e eu pensava que havia vazio na maioria das coisas. Interessante porque, muitos anos depois, isso não mudou. Agravou-se no meu caso.
Zoraya Cesar disse…
descamando, descamando, como quem nao quer nada, a Condessa nos conduz veludosamente a olhar o abismo sem fundo e a procurar, desesperados, algo que preencha o vazio antes q a gente salte para ele nos engolir.

nao foi fácil ler isso nao.
Albir disse…
Só uma curiosidade, quando chega no osso você para de dissecar ou continua para o tutano?
Albir disse…
E por que não tem sangue? Você tira antes ou congela?
Nadia Coldebella disse…
Se precisar de um mapa, avise
Nadia Coldebella disse…
Sim, piora com o tempo
Nadia Coldebella disse…
Acho que estamos é num buraco negro
Nadia Coldebella disse…
Depende. Se o objetivo é estudo, paro no osso. Mas se for tortura...😈☠️💀🌝

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