FINALIDADE DO FEITO >> Carla Dias
Esse negócio de observar ocorrido não colabora com a vida, meu filho. Vê se arranja um emprego decente, com salário capaz de cobrir despesas de água, de gás, de eletricidade, de aluguel, de roupa, calçado, comida. Para de sonhar, porque sonho atrasa a vida e os boletos. Tem de agir, entende? Não deixar o trem passar pra ficar olhando e lamentando montanha sendo coberta por andares de prédios cada vez mais altos. E daí que as casas estão morrendo? Se a gente morre, por que elas não podem morrer também? Essa bobagem de história impregnada em parede, teto, quintal, na certidão de nascimento de nascidos há séculos... bobagem, bobagem. Morreu tá morrido. Não precisa de muito pra ser gente nesse mundo. Um bom emprego, filho, quem sabe consigo uma vaga pra você lá na firma. Tem projeto novo entrando, coisa fina, precisa ver. Você só tem de parar com essa bobagem de que árvore é pra lá de importante. Viu aquela que caiu em cima do carro do vizinho? O coitado vai levar meses pra cobrir o prejuízo. Além disso, tem um monte delas dentro dos condomínios, viu aquele bonito da esquina? Onde ficava aquela escola de crianças barulhentas pra dedéu. Tem jardim particular, entrada principal digna de revista importante, sala de reuniões, academia, é chique, ao menos é o que dizem. Nem precisa sair de lá, porque tem tudo dentro do lugar mesmo. Modernizar não é isso? Deixar tudo mais fácil e bonito? Então, para de olhar pra esse muro, porque já corre, à boca miúda, que você tá endoidecendo. Como vai conseguir emprego com fama de doido, filho? Pode não... Tem de ser respeitável, ter noção do necessário, fazer por merecer. Quem nasce olhando pra passado, confiando em mundo inventado, que nunca vai existir, acaba na miséria. E você vai ter importância, mas precisa parar de perguntar motivo, viu? Isso incomoda as pessoas. Não precisa saber como tudo acontece... como você gosta de dizer mesmo? “Saber da finalidade do feito.” Carece, não. Filho, para de olhar pro muro, o que diabo você vê nisso? Faz mais de ano que foi melhorado, esse lugar deixou de ser pouco pra se transformar em referência do que todos querem. Entra, vem jantar e depois a gente conversa sobre o que der no jornal. Aposto que tem um monte histórias neles. Depois, voltamos à conversa sobre o que você vai fazer, além de olhar pra esse muro, como se quisesse morar nele.
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