NINGUÉM COM QUEM CONTAR >> MÁRIO BAGGIO

 



“Mercedes!”, gritei, assim que abri os olhos e vi que, mais uma vez, estava sozinho na cama. Há semanas minha mulher está esquisita: perde o sono ainda de madrugada, levanta-se e começa a andar pela casa. Depois, segundo ela mesma me conta, sai e caminha a esmo pelas ruas desertas durante horas. Volta com o cabelo em desalinho e um desagradável cheiro de suor, mas sempre a tempo de me preparar o café da manhã.

 Olho o despertador e percebo que hoje ela está atrasada. Abro o armário, suas roupas ainda estão lá, se tivesse me abandonado teria levado algumas mudas. Também não noto falta de dinheiro em minha carteira e seu telefone celular está sobre a cômoda. Onde raios ela se meteu?

 “Não sei o que vestir. Como vou para o escritório se não sei o que vestir?” Ando pela casa, tentando conter a irritação. “Vou chegar atrasado.” Escuto barulho na porta da frente e pouco depois aparece ela. Está assustada. Olha para mim com medo.

 “Eu me perdi, Afonso. Não sei o que aconteceu, mas de repente não sabia mais onde estava. Também não conseguia me lembrar de meu nome, nem de onde morava. Fiquei sentada na sarjeta durante vários minutos, tentando me lembrar de alguma coisa.” Aponto o relógio com o dedo indicador. “Vou chegar tarde ao trabalho”, eu disse, surpreendentemente calmo.

 “Estou dizendo que perdi a memória, Afonso, não me lembrava de quem eu era nem onde estava”, Mercedes segurava as lágrimas. “Era como se eu nunca tivesse existido.” Eu me aproximo e coloco meu rosto a poucos centímetros do seu. “Ainda não tomei café da manhã e não sei que roupa vestir para ir trabalhar, Mercedes. E você vem com essa história de que se esqueceu do seu nome? Pois bem, se você quer se lembrar de algo, quero que se lembre de que pela primeira vez, em vinte anos, vou chegar atrasado ao escritório.”

 Ela se senta na beirada da cama e começa a soluçar. “Você poderia tomar um banho e pentear o cabelo. Está cheirando a vinagre, parece uma selvagem.” Ela tira um lenço do bolso e assoa o nariz. “Mais essa agora, já não basta seu aspecto sujo e seu cheiro, agora tenho que aturar você limpando o nariz na minha frente? É assim que uma mulher deve se comportar?”

 Mercedes se levanta em silêncio e abre o armário. Pega um de meus ternos e o coloca sobre a cama, faz o mesmo com uma cueca, uma camisa, um par de meias e a gravata. Coloca os sapatos perto da mesinha de cabeceira. “Os sapatos estão sujos, manchados, tá vendo? Não posso ir ao escritório com eles assim.” Ela vai até a cozinha e volta com um pano e um pouco de graxa. Os sapatos rapidamente ficam limpos e brilhantes.

 “Agora tenho que correr. Por sua culpa. Não quero mais me levantar e não te encontrar em casa, entendeu?” Ao sair, bato a porta para demonstrar minha contrariedade. “Será a primeira vez que chegarei tarde ao trabalho. E ela chora porque se esqueceu de quem era, ora bolas! Como se isso fosse uma grande tragédia.”

 Imagem: Pixabay

Comentários

Anônimo disse…
Qtas Mercedes por aí??
Anônimo disse…
Adorei
Zoraya Cesar disse…
Um texto poderoso em sua concisão e sutilíssimo em sua dor. Vou sentir IMENSA falta de seus textos.
Jander Minesso disse…
Um “até breve” jogando aquela luz baggiana no que o ser humano tem de mais torto. Bom caminho.

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