“Mercedes!”,
gritei, assim que abri os olhos e vi que, mais uma vez, estava sozinho na cama.
Há semanas minha mulher está esquisita: perde o sono ainda de madrugada,
levanta-se e começa a andar pela casa. Depois, segundo ela mesma me conta, sai
e caminha a esmo pelas ruas desertas durante horas. Volta com o cabelo em
desalinho e um desagradável cheiro de suor, mas sempre a tempo de me preparar o
café da manhã.
Olho o
despertador e percebo que hoje ela está atrasada. Abro o armário, suas roupas
ainda estão lá, se tivesse me abandonado teria levado algumas mudas. Também não
noto falta de dinheiro em minha carteira e seu telefone celular está sobre a
cômoda. Onde raios ela se meteu?
“Não
sei o que vestir. Como vou para o escritório se não sei o que vestir?” Ando
pela casa, tentando conter a irritação. “Vou chegar atrasado.” Escuto barulho
na porta da frente e pouco depois aparece ela. Está assustada. Olha para mim
com medo.
“Eu me
perdi, Afonso. Não sei o que aconteceu, mas de repente não sabia mais onde
estava. Também não conseguia me lembrar de meu nome, nem de onde morava. Fiquei
sentada na sarjeta durante vários minutos, tentando me lembrar de alguma coisa.”
Aponto o relógio com o dedo indicador. “Vou chegar tarde ao trabalho”, eu
disse, surpreendentemente calmo.
“Estou
dizendo que perdi a memória, Afonso, não me lembrava de quem eu era nem onde
estava”, Mercedes segurava as lágrimas. “Era como se eu nunca tivesse existido.”
Eu me aproximo e coloco meu rosto a poucos centímetros do seu. “Ainda não tomei
café da manhã e não sei que roupa vestir para ir trabalhar, Mercedes. E você
vem com essa história de que se esqueceu do seu nome? Pois bem, se você quer se
lembrar de algo, quero que se lembre de que pela primeira vez, em vinte anos,
vou chegar atrasado ao escritório.”
Ela se
senta na beirada da cama e começa a soluçar. “Você poderia tomar um banho e
pentear o cabelo. Está cheirando a vinagre, parece uma selvagem.” Ela tira um
lenço do bolso e assoa o nariz. “Mais essa agora, já não basta seu aspecto sujo
e seu cheiro, agora tenho que aturar você limpando o nariz na minha frente? É
assim que uma mulher deve se comportar?”
Mercedes
se levanta em silêncio e abre o armário. Pega um de meus ternos e o coloca
sobre a cama, faz o mesmo com uma cueca, uma camisa, um par de meias e a
gravata. Coloca os sapatos perto da mesinha de cabeceira. “Os sapatos estão
sujos, manchados, tá vendo? Não posso ir ao escritório com eles assim.” Ela vai
até a cozinha e volta com um pano e um pouco de graxa. Os sapatos rapidamente
ficam limpos e brilhantes.
“Agora
tenho que correr. Por sua culpa. Não quero mais me levantar e não te encontrar
em casa, entendeu?” Ao sair, bato a porta para demonstrar minha contrariedade. “Será
a primeira vez que chegarei tarde ao trabalho. E ela chora porque se esqueceu
de quem era, ora bolas! Como se isso fosse uma grande tragédia.”
Imagem: Pixabay
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