O FUTURO É PERTO >> MÁRIO BAGGIO


Enquanto o CD não inicia as canções, olhamos os dois pela janela. Essa fumaça que vemos não é do último cigarro dela: é o meu cérebro, que faz um movimento para trás e revê tudo. “Este país é o país do futuro”, alguém disse há muito, muito tempo. A janela traz aos olhos a garoa e uma cidade deserta e eu parafraseio: “Esta cidade é a cidade do futuro... e sempre será.” Eu sei, é uma grande frase. Se fosse minha, se eu a tivesse criado por conta própria, compraria um alto-falante e a propagaria aos sete ventos. Mas só tenho o meu cérebro como caixa de ressonância, e ele está num movimento de retração. Diante de meus olhos só a cidade deserta, a garoa e o tempo que falta para o CD iniciar as canções. 

Você me diz para prestar atenção no salgueiro do outro lado da rua e no velho de boina vermelha que se escondeu da garoa debaixo da ramagem. Ele nos olha e faz sinais, parece que quer dizer alguma coisa a estes dois bonecos de cera quase imóveis no lado de dentro da janela, mas estava longe demais para ser ouvido, embora perto o suficiente para ser visto. O velho abandona o abrigo do salgueiro e dele sai uma voz, que fala a última frase que escutamos antes de começar a primeira canção do CD: “Sempre haverá putas cavalgando nas costas do futuro, olhando para o céu e com os cabelos ao vento, feito sereias num oceano de papel celofane. Esse é o capricho do tempo.” A garoa aumentou e agora chove forte. O velho sumiu na esquina. 

Eu ouvi putas, você, chuva. Eu, capricho, você, nada. Dá no mesmo: o velho e o que entendemos de diferente em sua voz não nos tirarão de casa nem da janela, nem do confinamento, nem de nossos livros e CDs de sempre. O futuro é perto, e nos devasta. 

Play.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Bem-vindo ao Crônica, Mário! Um prazer te encontrar aqui. Mais prazer ainda é ver que vc chegou chegando, com um texto pra lá de bom!
Esse contraste de um futuro que já chegou, ouvir cds e um cérebro revisando memórias é interessantíssimo: passado e futuro se combinando no presente, banhados pela interpretação individual de palavras que não são capazes de jogar as personagens pra frente ou para trás, apenas mante-las ali, no presente "tenso", em estado de suspensão.
Muito, muito bom!
Fique a vontade por aqui!
Ana Raja disse…
Belo texto! A costura tão bem feita entre o passado, o presente e o futuro!
Mario muito boa a crônica. O "putas" ficou ótimo! Parabéns. Abraços
Zoraya Cesar disse…
Bem-vindo! E, como disse a Nádia, chegou chegando.

Achei a mensagem assustadora. Bonecos de cera imóveis observando a vida lá fora enquanto a de dentro se repete infindavelmente e o futuro que chega nunca é o futura esperado. Me lembrou o musical Annie 'tomorrow, tomorrow, tomorrow your're only a day away' pra sempre.

Textão, hein? Gostei demais
Jander Minesso disse…
Não estava aqui na primeira passagem, mas achei esse retorno lindão. Belos símbolos, belas descrições… e eu vou parar de dissecar literatura agora pra não estragar tudo. Bem vindo de volta.
Ótimo texto, como sempre. Vou acompanhá-lo por aqui tb. Bjs
Albir disse…
Bem-vindo, Mário!
E parabéns pelo texto de estreia.
Fui conduzido à música da minha própria juventude, não ainda com CDs, mas com LPs.
Abraço.
André Giusti disse…
Muito bom, Baggio. Parabéns. Belíssima estreia. Sucesso.

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