O DIALETÓLOGO >> Carla Dias


Às vezes, levantar-se é um desafio. Diferentemente do que os colegas pensam, não se entusiasma mais com a profissão. Considerou outros cenários, caminhos diferentes, na verdade, ousou sem medo nas possibilidades. Em um primeiro momento, queria algo que ornasse com o título que já tinha conquistado (coisa de apego desvairado), e acabou se aprofundando um pouco mais no fazer do diabetólogo, o que foi um risco, porque descobriu uma grande variedade de comidas deliciosas, frequentadoras da lista das pestes acordadoras de diabetes, e fez, de muitas delas, seu cardápio cotidiano. Voltar à dieta saudável foi um inferno que nem Dante saberia colocar em palavras, mas conseguiu... mais ou menos.

Participante de um grupo de dialetólogos galardoados, não queria mais compartilhar histórias. Estava sem ânimo, especialmente depois que o filho, em uma discussão acalorada sobre as funções da língua, citou somente caminhos físicos, excluindo a linguagem do seu repertório, e, de acordo com a esposa, “melhor deixar o menino ser adolescente, porque é duro de aguentar, mas passa”.

Depois da aventura com a diabetologia, sua glicemia oscilava ao som de um violino desafinado. O chá de flor de laranjeira deu lugar às barras de chocolate. Viciou-se rápido, e se deixou levar pelo vício, contando com a habilidade de alguns diabetólogos, caso ele se perdesse de vez.

Apaixonou-se pela dialetologia por causa de uma vizinha, da qual entendia nenhuma palavra. O som do desconhecido, a vontade de compreendê-la, pois tinha muito a contar – não parava de falar, sem se importar com o menino não entender o que ela dizia – e era generosa, sempre o presenteava com quinquilharias divertidas. Mais tarde, soube que ela havia migrado dos cafundós de um lugar que ninguém sabia dizer onde ficava. Foi assim que nasceu a curiosidade dele sobre de onde as pessoas vinham e o que diziam.

O filho não entende direito a profissão dele, alegando que, hoje em dia, qualquer aplicativo pode resolver a comunicação, o que não deixa de ser verdade, mas manca, porque ele não consegue imaginar um mundo de esquecimento, de descarte da riqueza linguística, de indiferença à identidade dos povos. 

Assistindo tevê, algum programa de distração, nem sabia dizer qual, escutava o filho em uma ligação telefônica, e extasiou-se, pois entendeu quase nada do que ele dizia. No dia seguinte, começou a estudá-lo. Ainda havia um coração de dialetólogo batendo em seu peito.


carladias.com.br


Comentários

Nadia Coldebella disse…
Não sei porque, achei essa história triste, mas engraçada. Outro dia ouvi um colega, que estuda psicossomática, dizer que diabetes é uma reação física ao amargor da vida. Se é eu não sei, mas esse amargor da sua personagem com a profissão deve ser quase que uma regra na meia idade. Por sorte, ele ainda descobriu a doçura entre os amargos da vida.

Agora, é impressão minha ou vc está passando por uma mudança de estilo de escrita? Esse texto e o anterior estão especialmente interessantes. Fiquei grudada neles. Antes, eu precisava ler duas ou três vezes pra dar conta da complexidade, as vezes me afastar para dar conta e retornar depois, mas agora... Na verdade, continua complexo e profundo, mas é uma complexidade fluida, que amarra a gente. Está muito bom de ler, muito confortável, sem perder aquela sensação de incômodo e estalo dentro da gente. Continua texto terapia! Mas dá vontade de abraçar.

Gde Bjo!
Jander Minesso disse…
Que diferença uma letra pode fazer na vida de alguém, né?
Ana Raja disse…
Amei, Carlinha! Vc é demais.
Zoraya Cesar disse…
Tenho medo desse tempo em que nao entenderemos gerações próximas a nós, o q nos levará à solidão cada vez mais profunda e desesperadora. Tentar entender o outro é uma forma de humanindade. Estamos nos desumanizando. Pobre dialetólogo! Pobres de nós.
Albir disse…
Pode agora desfrutar sem culpa de algumas falas açucaradas.
Soraya Jordão disse…
As duas primeiras linhas me inquietaram muito... quantas pessoas a nossa volta
estão travando lutas interiores que sequer imaginamos.

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