NOVATO >> André Ferrer

Havia o homem que entregava o envelope e o homem que recebia o envelope. A ordem nunca tinha sido tão simples. Ele só precisava eliminar os dois e, é claro, apanhar o envelope.

Apesar da simplicidade da missão, Urso considerou e repassou cada detalhe. Assim que Manoel abrisse o seu botequim, estaria lá. O mais provável — e também ideal — seria que o outro homem chegasse antes do movimento. Então, Urso teria que ser rápido. A janela de oportunidades existiria por pouco tempo — entre a abertura do botequim e a chegada dos fregueses matinais. Meia hora depois de Manoel chegar e subir a porta de aço, uma horda de escriturários, vendedores e contínuos estaria no local para o desjejum.

Assim que chegou, Urso checou o endereço. Estava certo, mas era cedo demais. Teria que aguardar uns vinte minutos pelo menos. Então, sacou o seu isqueiro e um infame maço de cigarros Carlton. Droga!, pensou. Fumo Benson & Hedges, mas o maço acabou no final de semana. Preciso me virar com o que tenho. Está cada vez mais difícil encontrar o Benson & Hedges.

IMAGEM: PxHere

Urso colocou um cigarro na boca e olhou para o outro lado da rua. Depois, abriu a tampa do Zippo e, com os olhos semicerrados, puxou a fumaça. Felizmente — para compensar a mediocridade do Carlton —, havia o isqueiro Zippo Armor, que era lindo, viera dos EUA e fora um presente do seu chefe por causa da sua recente promoção.

Urso levantou o isqueiro até a altura da cabeça e fechou a tampa com energia. Novinho em folha!, pensou. Isto simboliza a minha transferência da burocracia para a ação de verdade. Meu rito de passagem para o mundo real. Para o trabalho, enfim, que eu desempenho agora.

Uma batucada de passos chamou a atenção quando alguém virou a esquina. Surpreso, Urso tirou o cigarro da boca, jogou no chão e pisoteou a brasa. Manoel caminhou até a frente do bar e levantou a porta de aço. Urso atravessou a rua e entrou.

— O que vai ser?

— Uma média.

Manoel bocejou e deu uma boa manjada no Urso, que achou o dono do botequim desconfiado. Desconfiado, mas não é dois!, Urso pensou. Tinha certeza de que o trabalho seria fácil enquanto observava o homem. Então, ele colocou o Zippo e o maço de Carlton do lado da xícara quando a média chegou. Manoel sorriu e voltou-se para a porta. Um homem magro e ligeiro tinha acabado de entrar.

— O que vai ser?

O magrelo bateu com os dedos no bolso da camisa.

— Oh! Sim — fez Manoel.

— Pensando bem — disse o magrelo. — Quero café e um pãozinho na chapa também.

— Às ordens.

Manoel preparou o desjejum do magrelo e se voltou para ele. Com uma expressão grave, colocou o prato e a xícara no balcão. Disse:

— Quase mandei suspender.

— O quê?

— Ora!

— Sim. Eu já sei! — disse o magrelo, que tornou a bater com os dedos no bolso da camisa.

Agora, com uma expressão de surpresa no rosto, Manoel debruçou-se no balcão e, bem mais perto do freguês, disse:

— Você é novo.

— Não no negócio — disse o homem magro, que apanhou o pão na manteiga e mordeu um pedaço. — É só a primeira vez que venho aqui.

— Okay.

Manoel se afastou e olhou direto para o Urso, que disfarçava. O freguês riu. Enquanto mastigava, observava a estante que ficava atrás de Manoel e sobre a longa pia.

— O que foi?

— Suas fotos.

— Ah!

Os dois porta-retratos também chamaram a atenção de Urso, que bebericou a média e examinou as imagens, uma e depois a outra.

Na primeira, Manoel estava numa pescaria. Um acompanhante aparecia e sorria tanto quanto o dono do boteco. Eles erguiam um pintado imenso nos braços. Era, mesmo, um troféu magnífico. Manoel vestia um uniforme camuflado. Um boné de pala larga protegia a sua cabeça. Na outra fotografia, ele estava acompanhado de um grupo de homens, todos em trajes femininos. Manoel usava uma tiara de flores e o batom vermelho estava manchado.

— Hilário — disse o freguês.

— Eu gosto de pescar, mas nunca vou durante o Carnaval. Adoro uma folia.

— Vestido assim!

— É o meu bloco. Chama-se As Meninas Superfragorosas.

O magrelo riu. Manoel esperou e prosseguiu:

— Uma vez por ano, não faz mal. Nos outros onze meses, eu pesco com a macharia.

— Entendi.

Num movimento só, um envelope saltou da mão de Manoel para a mão do freguês. Manoel olhou direto para o Urso, que entornava o último gole da média. Sem demonstrar, ele tinha visto a transferência do envelope. Era um profissional. Seu polegar direito acariciava o cão do revólver sob a lã do suéter.

— Muito obrigado. Vou indo. Tenha um bom dia.

Urso também se apressou. Havia dois alvos, mas o envelope também era importante. Além do mais, um homem acabava de entrar enquanto o magrelo saía. Os fregueses matinais não tardariam a chegar aos montes. Então, ele pagou Manoel e seguiu o magrelo, que foi alcançado à entrada de um beco. Urso tirou a sua pistola, girou o silenciador e obrigou o homem a mergulhar na estreita fenda que ficava entre duas paredes. O magrelo envergou-se. As mãos na cabeça sem que Urso solicitasse. Então, chegaram ao fundo do beco, que cheirava a mofo e a lixo.

— Olhe para a parede — fez Urso. Um carro passou. As asas de uma pomba bateram no alto da fenda. Um splash sanguinolento explodiu e escorreu no muro de tijolinhos ingleses.

Enquanto o sujeito parava de respirar, Urso vasculhou os bolsos dele. Encontrou o envelope. Tinha o logotipo de uma empresa de TV por assinatura impresso nele. Abriu. Havia uma nota de cem dobrada lá dentro e nada mais.

— TV a cabo — resmungou Urso.

Então, ele se abaixou. O sujeito usava uniforme! No bolso da camisa, o mesmo logotipo. Mas que diabos!, pensou. Manoel pagou a mensalidade e eu acabei com o cara da TV a cabo. Nossa! Preciso voltar e resolver o assunto. A pessoa que apanha o verdadeiro envelope não deve estar longe.

Quando Urso chegou à porta do botequim, descobriu que o lugar estava cheio. Um homem que usava o macacão de uma oficina mecânica. Um engravatado, que ria de algo dito pelo agitado Manoel. Outro, que olhou direto para o Urso e apontou.

— Manoel. É ele?

— Sim.

A alma do Urso congelou.

— Venha cá! — disse Manoel.

O sujeito que tinha apontado ficou em pé. Urso colocou os dedos sobre a lã do suéter. O rapaz avançou. Um dos braços dele, num movimento brusco, levantou-se. Urso flexionou as pernas, sacou a pistola e atirou no peito do rapaz, que vacilou para trás e deu um passo trôpego para a frente. Então, enquanto o corpo desabava e o braço insistia esticado, a mão do rapaz deixou cair o Zippo série Armor e o maço de Carlton.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Fantástico!!! Sabe o q me lembrou? Rubem Fonseca de bom humor. Exijo um final (in)dignon pro incompetente Urso! Amei!
Anônimo disse…
"Novato": Rubem Fonseca, ou Ivan Ângelo, ou João Gilberto Noll, escreveria esse conto e teria orgulho dele. Parabéns, André.
Anônimo disse…
Nossa, que dor! Muito bom! Soraya
Jander Minesso disse…
Me pegou da primeira à última linha. E essa mistura meio policial, meio Trapalhões foi boa demais.
Nadia Coldebella disse…
Amei! Cara, esse Urso precisa de uma boa aula com os assassinos da Zoraya! Vai ser incompetente assim bem longe de mim. Merece ser assombrado.

Agora, vc é um escritor sensacional, sabia? O texto começa numa seriedade e a gente fica esperando um amargor. Daí o amargo chega, mas é cômico. É um humor astuto, negro, que quebra expectativa, mas muito bom! E esse final, seco? Muito, muito bom, diliçaaaa!

Concordo geral, tem uma pegada de Rubem Fonseca, mas é mestre André! Sócio fundador da Fraternidade da Pá.
Albir disse…
Pronto, André, cooptado pela fraternidade, agora também vai frequentar meus pesadelos. Preciso não dormir!

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