DO OUTRO LADO >> Carla Dias


A luz que invade a sala anuncia que em breve o dia chegará ao fim. O anoitecer o acomete de melancolia, então, recolhe-se em si, ao mesmo tempo em que fecha as janelas.

Silencia o lá fora para sobreviver a ele. Teme as baratas voadoras e a curiosidade da senhora do apartamento do prédio em frente ao seu. Mora em uma avenida que não foi vestida de largura que se opusesse à aproximação da realidade de quem mora do outro lado dela. 

De quando em quando, sente o olhar da senhora a despir suas verdades adquiridas durante a programação do dia. Mais de uma vez, ele a escutou  responder “saúde!” aos seus espirros. Há tempos, escolheu acreditar que deve haver algo de bom nas intenções da curiosidade da mulher. Talvez ela sofra de insônia, taquicardia, impaciência; quem sofre dela, sabe que a impaciência adora armar ciladas para seus hospedeiros.

Distrai-se com os sons do cotidiano: o batuque oco do cachimbo contra a mureta da área de serviço do apartamento ao lado; o roçar umas nas outras das sacolas do supermercado carregadas escada acima. As três batidas de pé no capacho da entrada da frente do prédio. Há dias em que a sinfonia é a das máquinas de lavar, que parecem ter marcado hora para executar suas tarefas. Por pura solidão, exigem festa.

Há barulhos que se impõem, atravessando a segurança decorativa das janelas: sirenes, buzinas, discussões sobre conduta, dinheiro, amor; pele sendo sovada em prol da violência; passos apressados para evitar atraso. 

O seu preferido é o som da chuva se deitando sobre os telhados das casas que resistem à imponência dos prédios.

Sua realidade é um abrir e fechar de portas e janelas, acomodação de silêncios e ajustes das desculpas e das fugas. Não encontra quem seja, não se dá ao trabalho de conquistar amigos ou amantes. 

No entanto, há ela, a senhora do apartamento com quem divide avenida. Há tempos escolheu se habituar à curiosidade vinda do lado ímpar. Hoje ele se deita sobre a rotina dele como pele conhecida. 

Ele se distrai e olha direto para o outro lado da avenida. Seus olhares se encontram. O dela, curioso; o dele, acuado. Ela levanta o braço e coreografa um aceno, mas ele não olha mais para a notívaga. Fecha a janela em um fechar-se ao mundo que a intriga.

Sorri o desapontamento. Há muito tempo se aposentou dos eventos sociais e não tem mais saúde ou disposição para deixar o apartamento, mesmo adorando passeios apaziguadores. Por sorte, durante o dia ele abre as janelas como se a convidasse para entrar. Aprecia o cuidado que ele tem com plantas que embelezam a varanda; de ele passar mais tempo com os livros do que com a televisão.

Enxerga beleza na solidão assistida. Tem esperança que um dia ele acene de volta.


Imagem © Gerd Altmann from Pixabay

carladias.com


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