AS ÁGUAS DE BIDU >> Sergio Geia

 


Rafael analisava os gráficos no computador. Os números apontavam para uma ligeira diminuição da criminalidade na região metropolitana. Suspirou: 

— Já não era sem tempo. 

Ele recordava as decisões tomadas, o reforço no policiamento, especialmente nas regiões mais sensíveis, a contratação de novos policiais, a compra de armamento e veículos, enfim, foram medidas adotadas que tinham de trazer algum resultado; trouxeram. Talvez a melhora tenha sido pequena, mas os indícios de se tratar de uma tendência eram perceptíveis, e isso era bom. 

Havia silêncio no grande escritório mesmo com muita gente trabalhando. Ao fundo era possível ouvir a voz fina de Marisa Monte cantando Vilarejo, o som de teclados sendo tocados por dedos ágeis, um arrastar ou outro de cadeiras, algumas respirações profundas, diálogos em voz baixa. De repente, o trinado macio de um telefone, quase inaudível, suspirou na mesa de Rafael. Era Roxane, a bela secretária do chefe: 

— Rafael? O Coronel está chamando. Pra você subir imediatamente. 

Rafael sentiu um arrepio de frio, acompanhado de uma ligeira dor de estômago. Não gostava de conversar com o Coronel. O chefe sempre na defensiva, parecendo querer testar seus funcionários a todo instante. Chamando-o ao gabinete com aquele insuportável imediatamente, coisa boa não era. Rafael respirou fundo algumas vezes, bebeu água. 

Timidamente, bateu duas vezes na porta e entrou, pedindo licença. 

— Meu querido Rafael — disse o chefe —, sente-se, sente-se, temos um assunto urgente a tratar. 

Encabulado, o moço sentou-se, percebendo que o Coronel pegava o telefone: 

— Querida, dois cafés, por gentileza. 

Sem rodeios, para a surpresa do rapaz, o sisudo homem, que se mostrava naquela manhã estranhamente dócil e sorridente, perguntou: 

— Diga pra mim, homem dos gráficos: como estão as coisas em nosso quintal? 

Então era isso, pensou Rafael. O que o Coronel queria saber era se as medidas tinham produzido algum efeito. Era isso, embora ele não deixasse muito claro. Rafael então explicou que acabara de analisar os números e que sim, os índices estavam melhores. O homem abriu um largo sorriso: 

— Que continue assim, meu jovem, que continue assim! Tenho relatórios que mostram que nossos adversários estão tratando a questão do crime como o nosso calcanhar de Aquiles e a campanha está aí, você sabe, está aí. 

Rafael teve vontade de dizer que estava pouco se lixando para a política, mas não era burro, apenas concordou. Ao final, o Coronel mudou de assunto:

— O que eu tenho de urgente na verdade, pra falar com você, é outra coisa. 

O coração de Rafael começou a bater rápido. 

— Você ainda cuida de bonsai? 

O Coronel então explicou que necessitava de seus serviços também naquele assunto, que era importante e urgente. Disse que seu bonsai, presente de seu pai, que cultivava havia décadas, estava a morrer; que já tentara de tudo e não sabia mais o que fazer; que ouviu dizer que Rafael era bom nisso; que precisava de ajuda. 

Rafael tinha como hobby cuidar de bonsai. Havia dezenas da planta em sua casa, e de todos os tipos, desde juniperus, serissa, até pinheiro, romã, bordo japonês, cerejeira, cedro, figueira, jade-anã. Rafael se tornou um especialista nos estilos Hokidachi, Chokkan e Kengai, esse, na forma de cascata. 

No dia seguinte, Rafael apagava as luzes do escritório, levando consigo o bonsai do Coronel. Analisando a planta, chegou à conclusão de que a solução não seria difícil: uma reimplantação, algumas podas nas folhas e principalmente na raiz, luminosidade e água; bastavam essas medidas, alguns dias, e o trabalho de recuperação teria êxito. Esse era o projeto. Rafael só não contava com o auxílio do vira-lata Bidu no processo. Ao amanhecer, perambulando pela sua oficina notou, para seu desespero, que o que restou do bonsai do Coronel estava enterrado no quintal, as raízes para cima, tal qual pneus de um carro capotado. Seria preciso muito talento e criatividade para dar cabo da ressurreição do bonsai do Coronel. 

Algumas semanas depois do óbito da pequena plantinha, chegou enfim o grande dia. Rafael apareceu na repartição levando nas mãos o bonsai do Coronel. Duas batidinhas na porta, um pedido de licença, o sorriso estampado na cara do sisudo homem do Governo: 

— Mas olha o que vejo aqui! Não é que você é bom mesmo nisso, meu jovem. Meu bonsai até parece outro de tão bonito, parece maior, mais vistoso, elegante. 

O Coronel pegou o bonsai das mãos de Rafael e o colocou atrás de sua mesa, numa bancada ao lado da fotografia da família. Tentando se recuperar da emoção, os olhos cobertos por uma fina camada de água, o Coronel voltou ao tom grave de sempre: 

 — Mas vamos ao que interessa: diga pra mim, como estão as coisas em nosso quintal? 

Rafael saiu do gabinete satisfeito. O Coronel tinha aprovado o seu trabalho. Só não entrou em detalhes sobre como ressuscitou o pobre. E nem iria entrar, obviamente. No seu quintal, contudo, e não no do Coronel, a família já se acostumou a notar no cantinho perto da parede, sobras do que um dia foi a raiz de um bonsai, alimentado diariamente pelas águas amarelas de Bidu. 


Ilustração: Pixabay

Comentários

João D'Olyveira disse…
Texto maravilhoso, Sergio Geia! Narrativa, linguagem, vocábulos. Uma teia linguística que nos remete a um tempo duplo: ontem e hoje. Lembranças do quintal da infância, do Bidu das histórias em quadrinhos. Contudo, não teve como, estabeleci uma ponte com a atualidade política, ou seja,foco na segurança pública e nas estatísticas (falsas, criadas, verdadeiras). Então, mas e o foco? O foco está no bonsai, que me fez permanecer no hoje, porque o hoje, talvez mais que o ontem, politicamente, apresenta- se como uma técnica utilizada com o objetivo de “miniaturizar”, inspirando-se em formas existentes (ou não) na natureza humana (ou desumana). Águas amarelas. Parabéns, meu querido! 🙏 Na paz...
sergio geia disse…
Querido João. Grato mais uma vez pela leitura e pelo comentário. Situações do cotidiano que nos surpreende. Forte abraço, amigo! Na paz...

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