A DESELEGÂNCIA DO INTOLERÁVEL >> Carla Dias

Death and the Miser © Frans Francken II. Foto ©  Wellcome Collection

Os olhos ardem de fazer lágrima escapar da prisão do retraimento. Não é de choro compartilhado, de ceder a vez às emoções que deságuam sem permissão. Os que dividem com ele a varanda escolhem a desculpa de preferência: o vento ultrapassou as cortinas das pálpebras e balançou seus cílios antes que ele pudesse se proteger com um certeiro fechar de olhos. 

Pesarosos eles.

Eruditos especializados em fugas, viviam a zombar da dor, apostando na sua incapacidade de alcançá-los, os protegidos. Então, ela os tocou. As cicatrizes os abraçaram, física e emocionalmente; uma entrega forçada, a insistência que passa e derruba tudo.

Desventuradas elas.

Hoje vivem de romancear misérias cultivadas por decisões próprias. Incapacitados de renegar a existência da dor, proibidos de calar a boca do desespero. Subjugados pela vida, eles a difamam, melindrados por terem sido vitimados pelo seu descuido. Vida, a traidora.

Atormentadas pessoas.

Vestindo roupas mais delicadas que seus desejos, o suor estancado em prol da elegância à qual se agarram, na tentativa de garantir uma vaga na fila para lamber a sobra da dignidade que nunca tiveram, mas da qual reivindicam benefícios. Rastejam pelos cômodos, obcecados pelas rugas garantidas pela infiel duração de si mesmos; alimentados por uma mentira que se sobrepõe à outra, até restar nada que possa ser considerado uma verdade original. 

Amargurados seres.

Quem se tornaram é retorcido, deformado pelas mãos dos labirintos das escolhas; ufanistas à espera de um remédio que os cure, enquanto plantam na carne da própria existência uma série de finitudes elaboradas. Ainda assim, desprezam a culpa que provocaram, que agora os carcome, suga o prazer por um fio que vive escapando das suas investidas.

Infaustos, vociferam em seus esconderijos, acolhidos pelos ecos das promessas feitas na pele da falsidade. Dormem enredados pelo martírio de quem não sabe mais como sonhar, sentir a maciez do alívio ou a euforia da paixão.

Para eles tudo é plano, seco, de silêncio agonizante. Um bafo de uma realidade abstrusa.

Seus ancestrais os educaram para respeitar o inferno. Duvidaram da sua existência, satirizaram seus portões e suas armadilhas. Nunca imaginaram que eles mesmos se tornariam tijolos na construção das agonias por ele promovidas.

Infelizes todos. 


Imagem: Death and the Miser © Frans Francken II. Foto ©  Wellcome Collection

carladias.com

 

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