O VIGILANTE DO INFERNO >> Zoraya Cesar



A cor vermelha do entardecer se espraiava pelo céu como sangue derramado. O frio mortal do deserto chegava de manso, com a certeza dos que sabem que nada os detêm. 


Um vento sinistro assoviava selvagemente, numa exortação lúgubre às criaturas da noite, e a corda da forca balouçava alegremente no patíbulo que nunca era desmontado. A porta do cemitério, logo ali, ao virar da última casa, permanecia sempre aberta, para receber os corpos daqueles para quem não havia perdão.

Era a hora de mulheres e crianças se trancarem em casa. De os comerciantes fecharem suas lojas. E de o pastor persignar-se, aferrolhando a igreja após a última badalada das 18h. Somente a funerária permanecia aberta; sendo o coveiro e sua mulher conviventes com a morte, não temiam os vivos. 

Era chegada a hora dos lobos. Dos facínoras. Assaltantes. Bêbados. Pistoleiros. Assassinos. Caçadores de cabeças. E das almas penadas. 

Era chegada a hora de a taverna encher a noite com o ruído de copos e garrafas se entrechocando, punhos encontrando maxilares, palavrões obscenos, lâminas e balas penetrando corpos, últimos suspiros, gritos. 

Mesas de jogo se espalhavam pelo salão, e as escaramuças eram normais, mesmo entre os jogadores profissionais. O salão era território para quem sabia manejar cartas e armas e não tinha medo de usá-las. Não havia garçonetes; nem mesmo as profissionais do ramo se atreviam a circular por ali. Quem queria bebida ia ao balcão, pegava, pagava e pronto. 

A pianola tocava músicas soturnas, nas quais ninguém prestava muita atenção.  

Depois da meia-noite, lobos e almas saíam do cemitério, a rodear a taverna, sôfregos por carne e miséria.  E, quase sempre, voltavam satisfeitos. 

O cara chegou com estardalhaço. Ladrão e assassino, conhecido por sua crueldade e malícia impiedosas. Suas roupas um tanto largas não causaram estranhamento – todos ali estavam acostumados a ver bandidos usando as vestes de suas vítimas.

Louro e bem apessoado, seduzia facilmente mulheres para depois espancá-las e levar-lhes todo o dinheiro. Usava cinturão lustroso cheio de tachas prateadas, combinando com o chapéu. A arma, carregava alta, a demostrar que era rápido no saque. 

Sua fama era tanto maior que sua capacidade de bazofiar seus feitos horripilantes.  

Pediu o melhor uísque, jogou displicentemente o dinheiro no balcão, soltou uma gargalhada estridente e, após o primeiro copo, começou a falar. 

Os mais próximos prestaram atenção. Afinal, geralmente o contador oferecia uma rodada de bebida aos ouvidos mais complacentes.  

- Assaltei um coche e enfrentei cinco agentes armados dos Postais e Tesouros. Bando de bonecas. 

Espanto. Jogos foram suspensos, bebidas ficaram nos copos. Os agentes dos Postais e Tesouros eram, reconhecidamente, os homens mais corajosos e preparados da região. Difícil, muito dificilmente, alguém os enfrentava frente a frente e saía vivo para contar a história. Inteligentes, sagazes, bons de briga e armas. O fato de que um homem, e um homem apenas, tenha posto abaixo cinco deles era caso para ser contado e recontado durante as noites frias do deserto, ao redor de uma fogueira, ao som do chocalho das cascavéis.  

- Derrubei um com uma simples coronhada, ficou no chão gemendo que nem uma garotinha, dei-lhe logo um tiro nos cornos, pra aprender a ser homem. O que ousou tentar sacar mais rápido que eu, enterrei vivo com a cabeça pra fora, um festim para as formigas do deserto. Dois tentaram fugir, mas alcancei-os e os pendurei de cabeça pra baixo. E o último, que quis me esfaquear, estripei com minhas esporas, seus gritos davam pra ouvir depois da montanha hahaha. Idiotas. Se tivessem se rendido talvez estivessem vivos. 

Deu uma parada, olhou em redor, satisfeito em ver que a plateia gostara de seu relato – muitos deles capazes, eles mesmos, de perpetrarem a mesma selvageria.  

- Uma rodada do melhor para os meus amigos aqui – vociferou. 

Alguém riu, alto e sarcasticamente. Os lobos e as almas ulularam em uníssono, regozijantes, prenunciando morte. Dentro da taverna, o silêncio ficou pesado. 

- Tá rindo de quê, palhaço? 

O ‘palhaço’ em questão estava com o rosto escondido por entre os braços cruzados sobre uma mesa. 

- Responde logo antes que eu te arrebente as fuças.  

O sujeito misterioso mostrou o rosto. Um rosto impressionante, forjado a ferro em brasa, noites enregelantes e impiedosas, em anos de estrada ao relento, deserto e dor. Um rosto que perdera a juventude ainda jovem. Sua idade era imprecisa, mas, certamente, tinha mais anos passados que futuros. 

Era longilíneo, e, não fossem o queixo quadrado mal escanhoado e seus grandes olhos cinza-esverdeados que brilhavam como faca de aço ao sol - um brilho de morte – pareceria frágil.

- Você emboscou os agentes pelas costas para depois torturá-los.  É um covarde, mentiroso e canalha.
 
- Vou te arrebentar de porrada seu velho ridículo, você não vale uma bala – gritou o assassino, nervoso, sem saber como ele adivinhara a verdade. Aquele sádico vicioso não teria condições de enfrentar um agente, que diria cinco. 

Fora o enforcamento, a pior coisa que podia acontecer a um bandido era ser desacreditado. Tornava-se um pária e não sobrevivia muito tempo. Os demônios não acolhem os fracos.

O homem misterioso se levantou, os olhos fixos no bandido. Era mais alto que um cavalo e, pelos músculos rijos sob a camisa, tão forte quanto um. Portava o coldre baixo, a coronha voltada para frente, e tudo parecia parte integrante, uma extensão, de seu corpo. A arma - um Colt Peacemaker

Os sinais estavam todos ali, mas o facínora não acreditou que aquele sujeito envelhecido pudesse vencê-lo no saque ou no soco. 

Boa parte dos frequentadores, porém, se afastou ruidosamente: uma bala perdida sempre encontrava um corpo desavisado; ademais, muitos conheciam bastante bem o portador daquele Colt. 

- Seu saco de merda. Matou aqueles homens como não se mata nem a um cão. É o que você é. Um cão. E vai morrer como os de sua laia.

Os uivos e murmúrios sombrios ficaram mais fortes. Mais de um valente ali dentro sentiu arrepios. 

Ninguém percebeu o revólver sair e voltar para o coldre, tal a velocidade, mas viram o malfeitor cair, a barriga aberta pelo balaço.

Como se carregasse um pacote de algodão, o homem o arrastou por uma das pernas até o cemitério,
onde o escalpelou destramente, enquanto o bandido implorava por clemência. 

- Os lobos vão te comer em vida, aos poucos. E as almas imperdoadas te farão seu escravo, a torturá-lo eternamente, até o dia do juízo final que, para você, nunca chegará. 

Sob os gritos desesperados do assassino e de seus ossos e carne sendo despedaçados, o estranho sumiu no meio da noite. 
Seu nome era Shadw Alker, temido nesse mundo e no outro. Desafiá-lo era garantia de passagem direta para o inferno. Pagava seus pecados vingando a morte covarde de seus irmãos de armas. A taverna era seu purgatório. E um dia ele encontraria a paz. 





Colt Peacemaker -  O Colt Peacemaker, também conhecido como Single Action Army (SAA), foi criado em 1873 por Samuel Colt e sua equipe. Foi bastante usado pelos Texas Rangers, assim como o famoso Colt Paterson


Samuel Colt, CC0, via Wikimedia Commons

Comentários

branco disse…
Ler este conto foi como "pegar" a cena final de um livro de Miguel 'Chucho' Santillana. Matei saudades dos livrinhos de bolso. Como diria olhos azuis: FORMIDAVEL!
Anônimo disse…
Interessante! Todo covarde acaba tendo um fim semelhante.
Ultimamente ando vendo um "ovo" sendo moído por um "maluco e meio", e mais alguns na fila do moedor!
Marcio disse…
É sempre um prazer ler os textos da Zoraya em homenagem a Nêmesis.
Soraya Jordão disse…
e no final, a promessa de paz...
Jander Minesso disse…
Eu sei que suas descrições são muito boas. Ainda assim, sempre me surpreendo pelo jeito como você consegue fazer a gente sentir o ambiente através das palavras.
Érica disse…
Texto totalmente catártico do jeito que você gosta, né? Hehehe
Anônimo disse…
Conto precioso. Clima de Cavaleiro Fantasma, o avô do Motoqueiro Fantasma. Gosto desse universo e o seu estilo é muito adequado para descrever tal universo. André Ferrer aqui. P.S.: Lendo e comentando atrasado, mas colocando as leituras e comentários em dia.

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