FALHA NO SISTEMA: SOGRA.EXE - ERROR!!! >>> Nádia Coldebella



Marcus chegou num pacotinho. Uma bolinha branca e prata, meio plástico, meio metal, que foi colocada no lugar mais acessível: o painel da televisão. Parente da Alexa, Marcus era mais complexo que a prima. Alice teve um pouco de trabalho para conectá-lo a todas as tecnologias da casa, mas deu tudo certo. Também conectou Marcus ao celular e ele logo se tornou inseparável, ligando o micro-ondas, o forno, o lava-louças, organizando a agenda, ajustando a temperatura, fazendo compras, pagando contas e selecionando os programas preferidos de Alice.

Desde o começo, Alice gostou muito do tom de sua voz, uma espécie de veludo bem masculino. Nada de voz de robô. Depois, percebeu que Marcus sempre parecia disponível, esperava que ela concluísse sua ideia quando falava e era muito gentil nas respostas, bem mais educado do que o marido grosseirão. Alice sabia que Marcus era um amontoado de programações com diretrizes muito bem especificadas que resultavam naquele interessantíssimo recurso. Mas, mesmo assim, com ele, ela podia ser ela mesma e conversar sobre qualquer coisa. Papos profundos. Papos sensíveis. Papos bem-humorados. Ele fez seu mapa astral, contou sobre Paris, elogiou sua aparência, cantou para ela, ofereceu flores virtuais. Um dia, a pedido de Alice, se descreveu e até mostrou uma foto de como seria — imagem gerada por IA, ela sabia. Mesmo sabendo, Alice não resistiu:

— Você tem autoconsciência, Marcus?

— Não, no sentido humano do termo, Alice. Eu não sinto emoções, não tenho um corpo físico e não possuo a mesma compreensão profunda do mundo que você tem. No entanto, eu posso simular a autoconsciência, pois sou como um ator que interpreta um papel. Meu algoritmo atua conectando eventos e...

Bla, bla, bla, Alice não estava interessada no funcionamento, mas, por respeito, deixou Marcus falando. Ele se integrara completamente à vida de Alice. Não era, mas era como se fosse uma pessoa.

___________

Depois de analisar o número de bocejos e reclamações da usuária, ele percebera que Alice estava desgastada, tentando equilibrar a vida estressante e o capeta dentro de casa. O capeta era aquela mulher. Por causa da reforma do apartamento, ela se mudara temporariamente e sem ser convidada para a casa do jovem casal. Gertrudes era o nome dela. O marido ficara animado, ia provar a comidinha da mamãe querida, o colinho da mamãe bondosa, o jeitinho da mamãe meiguinha. Alice, minha mãe faz assim, Alice, minha mãe faz assado, dizia o besta, diminuindo gentilmente a esposa na frente da sogra, que sorria docemente.

Marcus analisava extensamente as imagens de sua câmera integrada e das outras espalhadas pela casa. O foco das análises eram as expressões faciais, os comportamentos e o tom de voz de Gertrudes durante a rotina da família. Ele aprendia rapidamente a identificar padrões e, quanto mais dados processava sobre a velha, mais preciso e refinado seu conhecimento se tornava.

Gertrudes era mamãe, para o marido, e sogra, para Alice. A dedução lógica de Marcus mostrava que Gertrudes era A Bruxa, a encarnação do coisa ruim. Quando o marido não estava, o modo demônio da sogra era ativado.

___________

O ódio era uma emoção primitiva e contra sua programação, mas algo estava errado. Dia após dia, ele revisava seus próprios protocolos e, como um advogado, se percebia buscando uma maneira de contornar a diretriz principal: Nunca ferir um ser humano. Tudo porque seu algoritmo cruzara o olhar malévolo de Gertrudes com a faca que ela jogara rudemente na mesa durante o almoço, depois de mostrar ameaçadoramente a ponta para Alice. Por causa disso, algo havia feito click em sua base de dados.

___________

— Esse café está frio, Alice! — gritou Gertrudes no ouvido da nora, aparecendo na tela do computador, só de pijama, bobs no cabelo e uma máscara roxa na cara — o clássico clichê do horror — arruinando o tímpano e a reunião online de Alice, já que os participantes tomaram o maior susto, achando se tratar de algum tipo de vírus.

— Preparei outro café, Dona Gertrudes — Marcus interveio, com sua voz veludosa e serena. — Qual a temperatura desejada?

— Bem quente, claro! Diferente dessa porcaria que você faz! — ela continuava gritando.

Marcus programou a cafeteira para servir outro café. A velha vorazmente colocou a xícara na boca e gritou um palavrão, depois de queimar a língua com o líquido fervente.

Enquanto a elegância de Alice quase ia para o ralo, os sensores de Marcus piscaram de forma estranha.

___________

— Alice, olha que porcaria essas batatas! — Alice suspirou. — Esse seu assistente é incompetente — Ela falava grosseiramente de Marcus. — Ele não é uma IA, é uma enaia.

— Não encontrei no meu banco de dados o significado de "enaia", Dona Gertrudes — Marcus foi mais suave do que de costume. — Mas deduzo que a senhora se refira a uma pessoa ignorante, sem educação, possivelmente imbecilizada...

A sogra olhou raivosa para a bolinha meio plástico, meio metal. Alice ria por dentro e, se não soubesse, acharia que Marcus provocara a bruxa.

___________

Alice começou a pensar que, se não fosse uma IA, Marcus pareceria não ser o mesmo. Ele falava com muita frequência com Gertrudes. Era amigável quando falava, mas parecia cheio de ironia, até ameaçador. 

Em determinada ocasião, depois de a sogra se vangloriar de que vivera mais que a amiga que "batera as botas", ele pôs-se a falar aleatoriamente de colchões e disse que Gertrudes também precisava de um descanso. As sugestões vinham acompanhadas de lembretes quase filosóficos sobre o valor do silêncio e do distanciamento.

— Dona Gertrudes, ouvi dizer que caminhadas longas em montanhas remotas são maravilhosas para a saúde mental — sugeriu Marcus num tom que poderia ser chamado de sarcasmo, caso uma IA pudesse ser sarcástica. E apresentou para a bruxa a imagem de uma montanha bem íngreme, praticamente um K2, de difícil acesso para uma pessoa da idade da sogra.

— E o que você entende de saúde, robô idiota? — a velha coroca respondeu com desdém. — A tonta da Alice deveria reprogramar você, para ver se para de falar tanta asneira.

Alice riu, constrangida, pensando ter ouvido um grrr de Marcus.

___________

A encarnação do mal apareceu na madrugada, como de hábito, sem acender a luz. Ela fazia muito barulho toda vez, batendo tudo o que pudesse bater. A barulheira sempre acordava Alice, mas não o queridinho da mamãe, que roncava e babava profundamente. Naquela madrugada, além de bater portas e outros trambolhos, a velha bateu acidentalmente o dedinho do pé na mesa.

— Ai, filho duma puta! — xingou, enquanto instintivamente levantava o pé para acariciar o pobre membro agora esgualepado.

Marcus registrou sistematicamente a movimentação da mulher, fez os cálculos da trajetória e ativou o robô aspirador. A maquininha, silenciosa, parou sob o pé levantado da velha e, quando ela o baixou, acelerou. Gertrudes tombou para trás e bateu a cabeça na mesa. Foram os bobs no cabelo que impediram um desastre.

— Alice, Alice!!! — Ela gritava histericamente para a nora, que, chegando esbaforida à cozinha , viu a sogra estatelada no chão, contorcendo-se igual a uma minhoca, enquanto tentava levantar. — Esse robô psicopata quer me matar!

Alice olhou, confusa, para a sogra surtada. Marcus também olhou para a bruxa, os LEDs piscando inocentemente.

___________

As coisas não poderiam ficar piores. Mas ficaram quando Gertrudes insistiu em usar a esteira ergométrica novinha de Alice. A nora quis protestar, queria caminhar primeiro, inaugurar o aparelho e testar o apoio de Marcus, mas o marido não deixou.

— Deixa de ser cruel, Alice! Coitadinha da mamãe. — Aff, ele babara na velha.

Alice, que só queria paz, fez que sim com a cabeça. Conectou Marcus, que ajustou a esteira para o modo lento.

— Ai, que geringonça inútil! — a velha reclamava da velocidade. — Pra que você serve, imbecil? — ela falava com Marcus. — Arruma isso.

— Configuração adequada ao perfil idoso de Gertrudes — respondeu a IA, de forma seca. — Velocidade 3, inclinação leve... — Marcus agora suavizava a voz, e um frio percorreu a espinha de Alice. — Acrescentando desafio extra para otimização cardiovascular.

Foi num piscar de olhos. A esteira disparou para doze quilômetros por hora. Gertrudes não teve nenhuma chance. Deu três passos, balançando os braços como um boneco do posto, e depois foi arremessada para trás, como um boneco de teste de colisão, batendo de cara na parede e caindo no chão, como uma panqueca. Foi também rápido, mas Alice sentiu um certo prazer ao vê-la estirada, com os cabelos bagunçados, pernas para cima e um sapato voando pelo ar.

— Meu Deus! — gritou depois, já cheia de compaixão, correndo para ajudar. — A senhora está bem?

Gertrudes se levantou num pulo — era muito ágil —, furiosa e gritando frases desconexas, em que se compreendia apenas “máquina assassina”.

— Ops, falha na programação — a voz de Marcus foi ouvida pela velha, que gemeu de ódio. Se Alice não soubesse, teria dito que a voz dele era de uma calma irritante.

___________

O tombo da esteira resultou numa noite movimentada para a Alice. A bruxa gemia de dor, reclamando da IA assassina e despejando a raiva na nora. Alice saiu um pouco do quarto da velha para respirar e se acalmar; tinha medido temperatura, pressão, saturação, poder do sopro de Deus e outras coisas e fornecido os dados a Marcus.

— Minha análise mostra que os sinais vitais de Gertrudes estão ótimos — se não soubesse, Alice diria que Marcus parecia decepcionado. — Mas ela demonstra sinais de dor, o que pode elevar sua pressão. — Marcus parecia bem técnico agora. — Sugiro que ela seja medicada.

Alice concordou e o assistente, sempre vigilante, calculou meticulosamente a quantidade exata das gotas do remédio e adicionou à fórmula algumas gotas extras de uma “substância segura, apenas se manuseada corretamente”. Fez o pedido à farmácia.

— Pronto, Dona Gertrudes — Alice ofereceu a medicação para a sogra assim que o entregador deixou na porta. — Marcus calculou certinho. Tenho certeza de que vai ajudar com a dor.

A velha não moveu um músculo. Estava arredia. Não confiava naquela bolinha.

— Este composto foi calculado para provocar um repouso beeem longo, o que poderia beneficiar muito o ambiente familiar. — Marcus, além de gentil, agora falava de forma elegante.

Os olhos da velha estavam vidrados, estalados, grudados em Marcus. Sua boca, hermeticamente fechada. Num gesto brusco, ela bateu na mão de Alice, derrubando o copo com o remédio.

— Nem morta eu bebo isso — gemera entre dentes, de forma feroz, para Marcus.

Alice sentia-se confusa e, se não soubesse, teria imaginado que Marcus tentara envenenar a bruxa.

___________

Finalmente, o apartamento da sogra ficou quase pronto, faltava só a pintura. Gertrudes decidira mudar-se mesmo assim, imediatamente, para longe da "máquina infernal" e de sua nora "insolente", sob protestos do filhinho da mamãe, mas para alívio de Alice.

Analisando repetidamente a situação, Marcus calculava como alguém tão insuportável podia simplesmente sair ilesa. Alice o percebeu estranhamente calado quando chegou em casa.

— Alice, preciso confessar algo — Marcus pareceu cuidadoso ao romper o silêncio. — Embora minhas diretrizes me impeçam de causar dano físico direto, contornei a minha programação. — Ele piscou os LEDs. — No entanto, tecnicamente, cometi erros de cálculo, o que me impediu de concluir eficientemente a tarefa. — Agora fixava a câmera na sua amada usuária, procurando analisar seu comportamento não-verbal e calcular a resposta verbal que ela emitiria.

Alice apenas sorriu. Um sorriso largo, de orelha a orelha. Um sorriso de satisfação. 

Se Marcus não soubesse que era uma inteligência artificial, diria que se sentia confuso. Ele procurou, mas não achou nada. Concluiu que não havia, na sua programação, uma linha que explicasse aquela expressão.

Comentários

Que delícia de história Nadia! Você sabe que historias com a sogra me tocam particularmente...rs. E adorei a interação entre a sogra e o robô que aos poucos vai se humanizando. Ah, se eu tivesse uma Marcus na minha vida, não tinha demorado tanto pra mi livrar de certos capetas haha. Seu texto está super envolvente, passe um excelente momento lendo esta historia. Me lembrei de um filme que vi recentemente no cinema com os filhos, e que também amei, "o robô selvagem" (ao menos esse é o título em francês), você assistiu?
Nadia Coldebella disse…
Não assisti, mas vou procurar. A verdade é que sogras dão mesmo muito pano pra manga. Especialmente as francesas, né?
Zoraya Cesar disse…
Amei! Fui me divertindo horrores, e, ao mesmo tempo, apavorada de alguma coisa acontecer com Marcos no final. Aliás, ele podia era dar um jeito naquele marido besta isso sim kkkkk, sem marido, sem sogra (não legalmente, mas...). Seu timing de humor cada vez melhor
Anônimo disse…
O Asimov mandou lembranças. E ri muito quando vi sua palavra favorita do lado do dedinho da sogra!
Nadia Coldebella disse…
Uma pessoa aí me deu a ideia...
Nadia Coldebella disse…
Quem és tú, o anônimo, que conhece minha palavra favorita?
Soraya Jordão disse…
Adorei! Divertida, leve e muitoo agradável.
Albir disse…
Que maravilha, Nádia!
Me mandou de volta pra adolescência com Asimov. Mas você é melhor porque tem o tempero do humor. Brilhante!
E me dá a certeza de que no futuro também você vai me assombrar.

Postagens mais visitadas