O TRILHEIRO - 1a parte >> Zoraya Cesar

 


O corpo do cavaleiro se dobrava sobre a sela. Talvez estivesse dormindo, desmaiado ou até morto, e apenas a rigidez do frio cortante o mantinha em cima da montaria.


Usava velhas calças de tecido grosso tipo denim e um chapéu de abas largas que já vira muitas intempéries. O couro de sua chaparreira e o pelo que revestia seu casado eram de búfalo Odos Ükher, um dos raros animais que resistiam a temperaturas abaixo de 0oC. Mas, diante do estado febril do cavaleiro, as roupas de pouco adiantavam. Se já não estivesse morto, logo estaria – impossível sobreviver no Deserto Mirtina Miegas, o deserto do sono mortal, sem uma montaria em boas condições.

Seu cavalo caminhava tão lentamente que, quem os visse de longe, pensaria estarem
imóveis. Os Akhal-Teke das Estepes Movediças eram fortes e resistentes. Conseguiam farejar água e abrigos a quilômetros de distância – mas nada havia para ser farejado. Conseguiam cavalgar durante dias seguidos quase sem comer ou beber, sob o sol escaldante dos dias longos, sob o frio enregelante das noites infinitas - mas não a vida inteira. A dupla estava sem rumo há mais tempo que a consciência poderia contar. E até um Akhal-Teke chega ao fim.

Tempestades de areia e sal podiam ser letais mesmo para os mais experientes, como era o caso deles. O cavalo não enxergava mais nada. Estacou. Sabia que continuar era inútil. O cavaleiro não se mexeu.

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Um trilheiro de resgate. Esse, o cavaleiro. Ele, assim como um dia foram seus antepassados, dedicados a salvar caminhantes e comboios perdidos nos desertos e ermos selvagens da vida.

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O cavaleiro estava a delirar, lembrando difusamente de acontecimentos recentes e antigos.

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Estava na hospedaria-taberna.

Havia uma lareira enorme e larga, cheia de madeira de pinho que aquecia o salão e dissipava o cheiro misturado de cerveja, veado assado, suor, cansaço, areia, esperanças velhas. Havia vozes altas contando vantagens e feitos reais, cantorias épicas, troca de informações, desabafos. Viajantes, caçadores, criadores, monges, negociantes, beduínos e cowboys todos precisando daquele lugar, daquele momento, para expulsar a exaustão, o medo, as preocupações. Porque sobreviver naquele ambiente inóspito e selvagem era para os fortes.

(Tempestades de sal, hordas de escorpiões voadores, o dia que se interrompia subitamente para dar lugar à noite escura sem estrelas, buracos que se abriam no meio da areia e engoliam carroças inteiras, temperaturas extremas. Entre outros)

Havia as mesas espalhadas, e as pessoas iam chegando e sentando onde houvesse lugar, ali mesmo fazendo novas amizades. Até porque, por quilômetros sem fim, boa parte do continente era aridez e solidão. Amigos eram fundamentais quando a vida era um constante convite a dançar com o demônio. 


Havia o balcão de madeira corroída pelo tempo e pelos cotovelos, corpos, copos que ali buscavam algo sólido e perpétuo no qual se apoiar. Havia a comida cheia de especiarias próprias para refrescar ou aquecer, conforme o tempo lá fora. Havia, de vez em quando, cantadores, sempre instados a tocar algo que comovesse os corações com músicas melancólicas que falavam sobre perdas de terras, de amores, de mortes; ou alegres, cheias de picardia e trocadilhos infames; ou com letras que contassem os grandes feitos dos trilheiros de resgate.

Trilheiros de resgate. Sim, também os havia. Não muitos, mas sempre.

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O cavaleiro, no fundo de seu inconsciente, lembrava de ter chegado à taverna depois de um salvamento. Estava ferido e tão cansado. Queria um banho, uma bebida, descansar.

Mas, como todo e qualquer um dos seus companheiros, primeiro cuidou de seu cavalo. Escovou-o, limpou as ferraduras, deu-lhe de comer e beber, deixou-o no melhor coche. Pois um trilheiro não existiria sem seu cavalo. Selvagens e ferozes, só obedeciam seu dono, a quem eram fidelíssimos. Se acontecesse de seu humano morrer antes, eles pereciam logo depois ou se perdiam nos ermos. A dupla trilheiro de resgate e seus Akhal-Teke das Estepes Movediças eram reverenciados em todos os lugares.

O trilheiro entrou. Comeu vorazmente, bebeu, fumou um cigarro, recostou-se numa cadeira, a ouvir histórias.  

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Em seu torpor, o cavaleiro, sonhando com o ambiente quente e aconchegante da taberna, suavemente embarcava nas terras das lembranças sem fim, de onde não voltaria.  Então sua cabeça quase explodiu com os gritos da mulher desgrenhada que chegara de repente arrastando pela mão uma criança pequena de olhos arregalados.

Depois de muito custo, conseguiram entender que a família errara o caminho e acabara nos charcos do Pântano do Desengano. Que o marido só tivera tempo de empurrar a mulher e a criança para fora antes de ser tragado pelas brumas.

O cavaleiro se levantou silenciosamente, pegou provisões, tabaco, munição. Selou o cavalo. Para os da sua irmandade não havia descanso. Eram trilheiros de resgate.

Montou e partiu.

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Mas, pela primeira vez em suas vidas, algo deu errado, muito errado. E agora, cavalo e cavaleiro estavam perdidos.

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Continua dia 25 de outubro

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Ai, dona Zoraya, o cara já tá morrendo congelado, de fome, de cansaço e de areia e agora ainda as coisas dão errado... e o pior, vc deixa só pra próxima parte? Até lá ele já vai estar soterrado! Não, pior, já vai ter virado esqueleto!!!
Marcio disse…
Lady Killer parece querer matar seus leitores, desta vez.
Causa mortis: ansiedade.
Como é que você termina o capítulo desse jeito, Zoraya???
OK, alcançou o efeito desejado e prendeu a atenção da audiência.
Mas e o dano colateral da ansiedade? Terá sido também desejado pela pérfida autora?
branco disse…
a premissa é ótima, a escolha do cavalo também. comentários finais na última parte. ahhhh.... este está prometendo muito(o que não seria surpresa, afinal, prometer e cumprir e com Milady)
Nossa, eu já estava lá, com o cavaleiro, neste mundo inóspito e encantador quando de repente o conto acaba. Quero saber o que vai acontecer com ele!! E a mulher, e a criança? E por que o resgate deu errado? Algumas partes não ficaram muito claras pra mim, entendi que no estado do sonho ele entra em comunicação com os que precisam de ajuda, mas então por que vc disse que ele não voltaria mais deste estado? Gostei do vai e vém temporal, mas algumas coisas
Me parecem confusas: sonhando COM o ambiente quente da taverna, mas ele
Não está na taverna? Ele chega na taverna exausto de um salvamento, num primeiro momento achei que não estava mais morrendo em cima do cavalo, mas depois entendi que ele está na taverna, sonha com a mulher e a criança, sai para o salvamento que dá errado e agora está morrendo em cima do cavalo, é isso? Desculpas pelas perguntas talvez óbvias… rs. Beijooos.
Antonio Fernando disse…
Acho que não vou conseguir ler a 2a parte. Morrerei antes de ansiedade pela espera. Dessa vez eu vou logo tomar meu remédio da pressão.
Jander Minesso disse…
A imunidade vai pro buraco com esse quente/frio, né? Mas brincadeiras à parte, sempre muito bom ver como você cria mundos, Zoraya. A gente viaja nessas descrições.
Érica disse…
Santa imaginação, Batman! O pior é que a gente acaba imaginando junto e viaja na sua maionese kkk
Zoraya Cesar disse…
Nádia - tenha paciência, não fique nervosa antes da hora. Ou melhor, fique sim hehehehe

Márcio - se eu consegui causar esse efeito colateral então não poderia ficar mais feliz. E sim, foi proposital. não lamento em dizer.

branco - agora quem está ansiosa sou eu, com medo de não alcançar sua expectativa.

Alfonsina - ainda bem q vc foi a única a nao entender, ou eu ficaria preocupada. Veja bem: o cavaleiro estava delirando em cima do cavalo, e, no seu delírio, relembrando os acontecimentos que o levaram até ali. Que foram: ele chegar na taverna e, eqto descansa entra a mulher dizendo que o marido precisava de ajuda. Aí o trilheiro resolve sair para resgatá-lo. Só que ele acaba se perdendo também e acaba naquela situação desesperadora.

Nando - hahahaha tome sim pq quero vc lendo e roendo as unhas no próximo capítulo

Jander - se vc, RPGista, gosta dos meus mundos e viajou na descriçao... bem, uau.

Érica - vc, cartesiana, viajando junto comigo, é motivo de muito festejar!

A todos, muito obrigada pela leitura e comentários generosos
Albir disse…
Pelo jeito, não vai sobrar lugar seguro neste mundo ou no outro. Você já me assustou no Brasil e fora dele, no oriente e no Caribe, nas estepes russas e no velho oeste, nos polos e nos trópicos, no passado, no presente e no futuro. E, por sadismo, acrescenta a ansiedade da espera por 15 dias. Você faz isso com todos que se aproximam ou é pessoal?
Márcia Bessa disse…
Oi Zo, amo esses ambientes que só você sabe criar. Mas reconheço nesse texto os falangeiros dos Boiadeiros do astral, que são verdadeiros resgatistas do mundo invisível. Desculpe, acho que viajei. 🤭. Ansiosa pelo dia 25.

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