OS CINCO MANDAMENTOS DA ORDEM DAS CURANDEIRAS DO ENTARDECER - 2ª parte >> Zoraya Cesar

UMA HISTÓRIA DE LEALDADE, VINGANÇA E MAGIA

Uma Curandeira do Entardecer conseguia ficar semanas sem beber, comer ou descansar. Lewlyen passara dias caçando medusas de tentáculos tilintates¹, pendurada de cabeça para baixo à beira de um abismo. O mais exaustivo fora evitar cair no encantamento desses seres, que entorpeciam a vítima com o som e o movimento de seus tentáculos e depois a devoravam ainda viva, lentamente. 
 

O cansaço a vencia, e o cesto cheio de medusas ficava cada vez mais pesado. Por mais urgente que fosse prepará-las antes que apodrecessem, a fim de curar uma aldeia inteira flagelada pela peste chupadora de olhos, Llewlyn precisava descansar. 

   

Recostou-se em uma rocha e, após comer com sofreguidão uma coxa de porco do mar, levantou-se, a contragosto. A tentação era grande, mas dormir seria estúpido demais: predadores também afeitos ao crepúsculo fariam dela uma presa fácil. 

Mal deu um passo, porém, o vento trouxe o odor de pele de búfalo apodrecido ao sol característico de bandos de Melcots e Undvigs². Não é possível! Que azar! Quase entrou em desespero. Esses grupos de traficantes extragalácticos eram violentos e crueis, costumavam torturar a vítima antes de roubar seus pertences ou extorquir-lhe informações. Curandeiras do Entardecer eram perigosas e resilientes, mas não imbatíveis, e preferiam fugir de qualquer contenda, pois o verdadeiro guerreiro sabe que toda luta é de final incerto – melhor não arriscar a vida. De qualquer maneira, Lewlyen estava exausta demais para lutar. Não tinha condições de fugir com o cesto pesado nem podia abandoná-lo. 

Só tinha uma saída. E uma esperança. 

A saída

Melcots e Undvigs tinham o olfato apurado, mas enxergavam muito mal no escuro. Lewlyen cobriu o cesto com suas vestes camufladas e aspergiu-as com uma loção desodorizante. Feita à base de planta-cadáver (que, em seu caule, exala cheiro de carniça), a loção deixava qualquer coisa inodora, imperceptível aos melhores farejadores. 

A esperança

Só havia um lugar no qual poderia se esconder em segurança: a rocha na qual recostara. Para isso precisaria da permissão da ninfa que a habitava, e as Oréades das pedras, irascíveis e imprevisíveis, não gostavam

muito de seres de carne. Lewlyen se ajoelhou:

Ó Senhora das rochas e montanhas, me perdoe perturbar sua existência.

Eu, Lewlyen, Curandeira do Entardecer, honro os seus domínios, e  peço humildemente,

em nome da Grande Mãe que nos criou, sua ajuda e proteção.

Algumas pedrinhas rolaram, em resposta ao seu apelo. Se tivesse tempo, Lewlyen choraria de alívio. Encostou seu corpo na pedra, que imediatamente o absorveu. Agora, mulher e pedra eram um só. 

Imersa na rocha, viu o bando chegar e parar perto do cesto. Lewlyen se preparou para o pior. Se encontrassem o cesto saberiam, pela roupa, que se tratava de uma Curandeira, e não descansariam até descobrir onde ela estava. E Lewlyen não poderia ficar na rocha indefinidamente. 

Mas a camuflagem e a loção desodorizante cumpriram seu papel. E como uma Curanderia do Entardecer nunca deixava rastros, nada perceberam da sua presença. Partiram. Ela esperou até que a terra parasse de tremer sob os odiosos pés e patas daqueles seres assustadores e só então desmesclou-se da rocha.  

Ó generosa Oréade, enquanto houver uma Curandeira do Entardecer nesse plano astral,

essa rocha sobreviverá incólume a todas as intempéries,

até que você seja chamada à presença do Grande Fim, que chega para todos.

Alguns pedregulhos rolaram até os pés de Lewlyen. A Oréade aceitara o agradecimento. 

   

O tempo dentro de uma rocha passa lentamente e Lewlyen sentia que descansara por horas. Tinha pressa em chegar na aldeia dos Anões dos Subterrâneos, onde encontraria pouso, um quarto com roupas limpas, comida boa e chá quente. Ansiava por encontrar seus amigos.

   

Dois dias depois, encontrou. Encontrou o que sobrara da aldeia, semidestruída pelo ataque do mesmo bando do qual ela, Lewlyen, escapara. Anões dos Subterrâneos eram os melhores informantes do planeta, sempre sabiam onde encontrar matérias-primas para magia, rituais, encantamentos... Tudo o que Melcots e Undvigs traficavam. Só não foram completamente dizimados pelo bando porque Anões dos Subterrâneos eram filhos da terra, podiam se esconder em túneis e labirintos subterrâneos e nem mesmo o melhor caçador encontrava o caminho de volta.

Se estressado

ou acuado, o 

Squonk derretia

de tanto chorar

Lewlyen chorou tanto que começou a derreter, como um coitado de um Squonk³. Mas ela não era um coitado de um Squonk, e sim uma Curandeira do Entardecer, e tinha agora não uma, mas duas missões. Enxugou as lágrimas.

Primeira missão

Preparou os tentáculos das medusas e enviou o remédio para o povoado afligido pela praga chupadora de olhos. Cuidou e tratou dos feridos no povoado dos Anões dos Subterrâneos. E ajudou nas exéquias dos mortos. 

Segunda missão 

Obedecer aos outros mandamentos da Ordem das Curandeiras.

Amigos são o verdadeiro tesouro de uma Curandeira, e devem ser protegidos.

E quem lhes fizer mal deve pagar por isso.

(3º mandamento)

Como todas as de sua espécie, Lewlyen parecia frágil e indefesa, com sua compleição pequena e magra, a pele azul clara e macia e grandes espantados olhos cor de âmbar. No entanto, Curandeiras do Entardecer sabiam se defender, bastante bem, aliás. Exímias caçadoras, podiam sobreviver em regiões sombrias e ambientes inóspitos, onde viviam criaturas selvagens e perigosas - plantas que necrosavam a pele a um simples toque; esporos que comiam os pulmões da vítima; insetos minúsculos, vorazes por carne viva. E, embora evitassem matar, na verdade tinham gosto por sangue, facas e vinganças. Uma vez começada a luta, iam até o final - o delas ou do oponente.

  

Mantenha-se viva custe o que custar, doa a quem doer, mate a quem matar.
(4º mandamento)

Lewlyen se preparou para a longa viagem em busca de vingança. Não faria prisioneiros. Não teria pressa em matar. Curandeiras do Entardecer tinham por missão a cura e a minoração dos sofrimentos. Mas, uma vez despertada, sua ira só se apagava às custas de sangue.

Ao crepúsculo, fez seu ritual de despedida:

Pelo juramento de sangue e lua das Curandeiras do Entardecer,

andarei por caminhos tortuosos, ajudarei os que necessitarem

 e não descansarei até que a justiça aos mortos seja feita. 

Eu, Lewlyen, assim o digo.

 

Não deixe inimigos para trás, não deixe o sofrimento sem cura. 

Só volte para casa depois de cumprida sua missão. Sempre cumpra sua missão. 

(5º mandamento) 

para ler a primeira parte clique aqui 

¹Medusas de tentáculos tilintantes - Ervas malditas que envenenavam qualquer solo por onde rastejassem. Alimentavam-se dos passantes – de qualquer espécie – desavisados. Mesmerizada pelo som e dança de seus tentáculos brilhantes e coloridos, a vítima caía numa letargia irreversível, para então ser devorada viva. No entanto, serviam para curar feridas de combate, diversas doenças, pragas e maldições. Eram quase uma panaceia universal.

² Melcots e Undvigs - seres extragalácticos mercenários, parasitas que invadiam lugares em guerra para lucrar com roubos, pilhagens, sequestros e, principalmente, tráfico de magias, rituais e matéria-prima para poções e feitiços. Melcots se assemelhavam a pequenos minotauros cobertos de escamas cortantes; seus dentes serrilhados conseguiam triturar pedras e seu coice de cascos pontudos podia até mesmo penetrar a armadura poderosa de um guerreiro alado e feri-lo gravemente. Raça de fêmeas que só conseguiam procriar no ventre de machos mortos de outras espécies, as Undvigs eram caçadoras temíveis.  Seu corpo consistia em uma espécie de boca que servia tanto para farejar quanto para comer, dotado de duas pernas curtas, que, paradoxalmente, corriam a uma velocidade assombrosa – poucos conseguiam escapar à sua perseguição.

³squonks - criaturas que estão em constante estado emocional de sofrimento. Quando extremamente nervosas ou amedrontadas, derramam tantas lágrimas que começam a se dissolver. Seu nome científico é Lacrimacorpus dissolvens. 

Para mais informações: https://pt.wikipedia.org/wiki/Squonk