DIA DOS NAMORADOS PARA SEMPRE >> Zoraya Cesar


Lone não era o exemplo de cidadão, nunca fora nem pretendera ser. Gostava mesmo da vida perigosa de assaltante, bandoleiro, jogador. Mas covarde, nunca fora. Era leal ao extremo. E bonito. Deus, como era bonito!

Para muitas mulheres ele teria o rosto quadrado demais, o queixo preeminente demais, os olhos impiedosos demais, os maxilares altos demais... Pra mim, ele era perfeito.

Dizem que toda mulher tem ao menos um amor bandido na vida. Não sei se é verdade para todas. Comigo foi.

Se bem que, bandido, bandido, não era. Só matava ou trapaceava quanto absolutamente necessário. Apenas não tinha emprego fixo e vivia à margem da lei. Isso. Lone era um marginal, um fora da lei. Apenas isso.

Não causava grandes prejuízos à sociedade. Bancos? Blah, essa gente ganha dinheiro às custas de todo mundo. Jogadores? Blah blah, quem manda ser bobo? Caiu na chuva é pra se molhar.

E eu o amei assim que o vi amassar a cara de um safado bêbado que passou a mão em mim. Desgraçado. Não é porque sou garçonete em um bar de 5ª categoria que alguém pode ir passando a mão em mim assim, sem mais. Tem de pagar. E eu tenho de estar a fim. Não sou exatamente prostituta, apenas troco meu corpo pelo prazer do sexo e do dinheiro. Meu trabalho principal é garçonete.

Mas, enfim, me apaixonei por ele e ele por mim e em breve essa paixão se transformou em amor.

Amor sim, senhoras e senhores, amor sim. Por que não poderíamos amar profunda, leal e eternamente como todo mundo? Ah, porque não somos como todo mundo? Tem razão. Não somos.

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No Dia dos Namorados, Lone me fazia esperar até tarde da noite, fingindo que não viria me ver. Antes da última badalada da meia-noite, ele chegava, sempre com um mimo, uma florzinha, uma jóia roubada, alguma coisa (eu nunca perguntava nada. Pra quê?), me beijava  e dizia “Feliz Dia dos Namorados Fora da Lei, Amada”. Não trocaria esse momento nem pelo poema de amor mais famoso, pelas trombetas dos anjos, por nada.

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Lone tinha uma vida meio errante. Uma hora aqui, outra ali, tinha de sumir por uns tempos, para deixar os ânimos se acalmarem, a polícia ter novos bandidos para procurar.

Esse tempo que passávamos separados era muito doloroso para ambos, podem acreditar. Era amor verdadeiro sim, que pegava fogo na cama (no celeiro, nas montanhas, nos fundos dos quintais, qualquer lugar era lugar) e que deixava um buraco no coração quando estávamos separados. Éramos jovens demais, tudo é grandioso.

Por isso decidi seguir com ele. Estava enjoada de ser garçonete e depois que comecei a namorar Lone, ninguém mais queria transar comigo. Sem dinheiro, o que eu ia fazer ali sozinha?

Gostei daquela vida, aprendi muita coisa, cavalgar, atirar, acampar, assaltar. Bom demais. O sexo ficou ainda melhor. E nosso amor não tinha limites. Eu tinha certeza que não sobreviveria a ele. A vida não teria sentido sem meu amor a meu lado.

Vocês podem pensar que eu, sendo mulher, queria uma família, filhos, essas coisas. Mas quem queria isso era Lone! Adorava crianças e queria que nossos filhos crescessem num lar decente. Confesso que meu sonho era outro, permanecer naquela vida airada até não aguentar mais. Mas se meu amado queria ‘assentar’, virar burguês e ter uma família, ele teria isso. Eu vivia para vê-lo feliz.

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A vida, no entanto, tem seus próprios desígnios.

E Lone, inadvertidamente, se meteu com gente errada, bandidos de verdade, acostumados a matar. Três mercenários que tacavam fogo em casas, estupravam mulheres, torturavam crianças e velhos, matavam homens e animais. Só de me lembrar deles tenho engulhos.

Fugimos. E mesmo escondidos, sempre com medo da nossa própria sombra, Lone, ainda assim, fazia a sua surpresa de Dia dos Namorados.

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Como disse, nunca fizemos mal a ninguém. Por isso tudo foi tão injusto. Éramos tão jovens.

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Eles chegaram na calada da madrugada, atacando-nos traiçoeiramente. Ainda conseguimos correr, mas não havia saída. Íamos morrer. Então, Lone me jogou numa ribanceira para que eles não me pegassem e voltou para enfrentá-los.

Caí gritando de ódio, eu não queria abandoná-lo, queria que morrêssemos juntos.

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Quando acordei, me vi deitada numa cama dura e limpa, em um quarto pequeno com uma janela enorme. Um sol quente e acolhedor caía sobre mim. Levantei cautelosamente, pois a queda tinha sido longa, eu batera em várias pedras pontudas e tenho certeza que senti minha cabeça abrir numa explosão de sangue e dor.

E, no entanto, ali estava eu, ilesa. Fiquei parada muito tempo, sem entender o que estava acontecendo.


E de repente, saí correndo, gritando por Lone. Se eu escapara, talvez ele também.

Corri, corri, muito tempo. Nunca vira uma paisagem tão bonita. O sol dourava tudo, as árvores, os prados, o rio. Corri, corri, corri. Não sentia fome, frio, nada, só a necessidade de ver Lone.

Aos poucos a paisagem foi mudando e, quando dei por mim, estava numa cidade, de frente para um bar imundo, no qual o facínora número um enchia a cara de uísque barato. Maldito!

Fiz o que tinha de fazer e esperei. E pude ver, com um sorriso nos lábios, o cavalo dele desabalar pelo deserto, derrubar o calhorda e arrastá-lo pelas pedras quentes até que de seu corpo só restar uma massa sanguinolenta e retorcida. Eu colocara urtiga entre a sela e o cavalo.

E continuei correndo por charnecas e pântanos e, quando dei por mim novamente, encontrei o facínora número dois, deitado debaixo de uma árvore, dormindo o sono dos ímpios. Amarrei uma corda em seu pescoço, passei em volta da árvore e amarrei a outra ponta no cavalo. Eu nem tinha feito nada ainda para isso, mas o cavalo se assustou e enforcou o vagabundo lentamente. Não tão lentamente quanto eu gostaria, mas foi satisfatório.

Não me lembro de nada, a não ser que, de repente, eu estava correndo por planícies áridas e pedregosas e, do nada, encontro o terceiro e último assassino. Dormia dentro de um saco de dormir, naturalmente roubado de algum coitado que deve ter sido morto. A fogueira estava tão perto... tão fácil uma fagulha pular para cima do saco que, graças a mim, agarrara, não abria de jeito nenhum. E foi assim que o terceiro covarde que tentara nos matar morreu lentamente assado.

Sentia-me muito afortunada. Graças a meu amado eu escapara de um destino terrível na mão daqueles pervertidos, e graças a algum milagre sobrevivera à queda. E mais, alguma proteção divina permitiu que os bandidos não me vissem! Pude me vingar de todos.

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Mas eu ainda não encontrara Lone. Estaria vivo como eu? Onde estaria? Daria a vida para encontrá-lo bem.

Andei, corri, andei, corri muito tempo, por várias paisagens e lugares, sem que ninguém me incomodasse, sempre à procura de Lone.

E de tanto andar e correr, eis que cheguei na linda pradaria onde acordei após a queda. O sol estava especialmente brilhante, abelhas zuniam por todos os lados e as flores exalavam um cheiro inebriante. Mas eu não estava feliz. Queria continuar correndo até o fim do mundo, até encontrar Lone.

E foi quando vi um vulto ao longe. Não dava para enxergar detalhes, mas aquele andar, aquele chapéu!

Mais alguns passos e pude distinguir a figura de meu amado, meu amor, minha vida! Estava com um buraco enorme na barriga, do qual saía muito sangue. Mas, que coisa estranha, à medida em que ele se aproximava,  o buraco ia fechando e o sangue desaparecendo.

Quando chegou ao alcance de meus braços, já era o meu Lone por inteiro, saudável, jovem, sorridente. Tirou um embrulho do bolso do colete. A fita de cabelo que eu usava na noite de horror!

- Feliz dia dos Namorados fora da lei, minha amada!

Sim, decididamente, não somos como os outros.


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Comentários

Marcio disse…
Zoraya, longe de mim querer despertar seus ímpetos assassinos, mas acho que um dos mercenários escapou de sua sanha vingadora.
branco disse…
Belo e surpreendente. Final impactante.
Anônimo disse…
Por algum motivo, o espírito dela conseguiu materializar a vingança e reencontrar o espírito do parceiro! Mas faltou um dos assassinos ou ficou para ser testemunha dos outros terem ido para a "Cidade dos pés juntos"!
Zoraya Cesar disse…
Márcio e Anônimo Jorge: muito obrigada por chamarem a minha atenção. Na verdade eram apenas 3, mas a heroína, assustada acabou contando errado. Já foi acertado no texto.

Branco, - gentil, como sempre!
Marcio disse…
Zoraya, então vou creditar esse plot twist a um elemento de ficção científica: Lady Killer viajou no tempo para matar o quarto mercenário ainda no berço.
Jander Minesso disse…
Eu queria saber como é o ambiente onde você escreve. Na minha imaginação, é tipo o escritório do Dylan Dog (que já citei em textos seus antes), com mais fumaça. E no fundo, tá sempre tocando Morphine, Tom Waits ou Nick Cave. Baita clima.
Nadia Coldebella disse…
Jander, vc pode acompanhar o desenvolvimento do texto dela nos rascunhos do blogger. É interessantíssimo! Volta e meia dou pitaco no destino dos personagens, mas a Zô é única, ela me disse: vamos ver o q o texto quer.
Zô, sabia que os dois seriam espíritos vingadores num amor imortal! Amei a balada vingadora!

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