DO CÁRCERE À MORTE >> Ana Raja


Meu pai gostava de ditados populares. Esses dias lembrei de um que ele costumava dizer em situações de arbitrariedade: não existe injustiça mais injusta do que a prisão de um homem... sem provas. Seu rosto ficava vermelho, a pupila dilatava e uma inquietação, regida por seu sangue quente, o deixava dias a refletir sobre o verdadeiro significado de igualdade perante a lei.

A casa cor de laranja, no final da rua sem saída, foi invadida por policiais à procura de drogas, às seis horas da manhã. Nela dormiam três moradores, com nomes de anjos: Rafael, Gabriel e Misael. Dois deles sabiam o que estava acontecendo e o que constava no mandado policial. O outro, não tinha conseguido nem acordar direito, quanto mais saber o motivo daquela intrusão. Quando se é acordado junto com o sol e dentro da sua morada existem evidências que você desconhece, vem a calhar outro ditado do meu velho pai: até provar que focinho de porco não é tomada!

Meu pai faleceu há muito tempo, tinha quase noventa anos. Ele devia ouvir essas coisas do meu avô, e assusta constatar que elas ainda valem. Que injustiças, violência – em todas as suas camadas, dissimulação, abuso de poder sempre existiram em sociedades com pouca boa vontade para atender os seus cidadãos.

Dona Letícia passou dois anos sem preparar o tradicional almoço de domingo para a família. Perdeu o gosto e o dom dos temperos depois que seu menino foi preso sem dever nada à justiça. Foi logo cedo, o filho morava na casa cor de laranja. Alugou um quarto apenas para tomar banho e dormir. A localização era boa e facilitava o trabalho de dia e a faculdade de noite. Andava em cima da moto por toda a cidade. A mãe vivia com o coração apertado, com medo de acidente. Às vezes, ele encontrava uma folga entre uma entrega e outra e passava na casa da mãe para lhe dar um abraço. Alegria e orgulho de mulher trabalhadeira é ver os filhos no controle do seu destino.

A polícia levou os três rapazes para a delegacia, e o menino de Dona Letícia não se saiu bem nas declarações. Sina impiedosa. Ficou nervoso e acabou preso. Os outros disseram que ele não tinha nada a ver com a droga encontrada escondida atrás do tanque. Não adiantou. O pobre coitado estava no local, ficou nervoso ao dar seu depoimento e selou seu destino. Ah, meu pai... 

Dois anos de luta. Advogados, processos, rezas, promessas e esperança. Mães, nesses momentos, se transformam em detectores de verdades, andam em busca de pistas, amanhecem nas portas das casas de quem for preciso, arrastam os joelhos na rampa da Basílica de Nossa Senhora, até que chega um dia e outro ditado popular e muda o curso da história. Mentira tem perna curta.

Ficou provado que o menino de Dona Letícia era inocente. O almoço de domingo voltaria a ser alegre. Os ingredientes na geladeira dariam na melhor comida de todos os tempos. 

O alvará de soltura estava pronto, bastava destrancar os portões. Preso injustamente, o menino passou mal um dia antes de reaver a sua liberdade: estava com dores abdominais. Três policiais o escoltaram até o hospital. 

A mãe o esperava com o almoço pronto.

A mãe recebeu o laudo da causa da morte do seu anjo.

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Imagem © Ichigo121212 por Pixabay 

anaraja.com.br

Comentários

Soraya Jordão disse…
Que texto potente! Adora sua forma de costurar a história.
Carla Dias disse…
Concordo com a Soraya, sobre o soco no estômago que é o texto, e no gostar muito a forma como você traz suas histórias à vida.

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