DESAJUSTES >> Carla Dias


Levanta-se, enfia os pés nos chinelos e os arrasta até a varanda. Quer ver o dia nascer, mas o vento se mostra presença dominante e invade o sossego que ele economizara, arduamente, para dele usufruir nessa amanhã.

Levanta-se remoendo a verdade atrelada aos engodos do esquecimento provocado para gerar sossego necessário. Sossego para quem não acomoda o desejo envelhecido, mas não de prazo vencido, mantendo-o morno feito pele lidando com vaguear em quintal na tarde de outono; tateando rugas como quem lê mapas de semelhanças ignoradas para acalmar desespero.

Desespera-se com frequência diante da sinuosidade do imaginado. Não sabe sonhar em benefício próprio, não sem inflar seus sonhos com tragédias de gestar soluções que se espalham potentes pela sua realidade desalinhada.

Ontem remoeu inveja de si ao lembrar-se de ter embalado chances enquanto escutava playlist de converter possibilidades em acontecidos. Ressente-se da sua versão que evita o movimento. Ainda assim, aprecia saborear deleites vazios, intumescidos de tanto nada a caber na valentia do desacontecimento.

Levanta-se, enfia os pés nos chinelos, espreguiçando-se exagerado, de esticar pensamento até o impossível. Passa a desejar, com requintes de tempestade, aquele impossível de anestesiar medo. Sente-se valente ao se despir de cada covardia cometida em nome da autopreservação. Alimenta-se das dores para confirmar sua própria existência.

O que fere fica.

Levanta-se antes de o despertador gritar. Antecede o definido e lida com o dia assim, deselegante consigo mesmo.

Imagem © Molly Mong por Pixabay


carladias.com


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