UM HUMANO-PARADOXO >>> Nádia Coldebella

Um humano acordou certa manhã meditando sobre os paradoxos.


(Vou contar a história de um humano, talvez um homem, talvez uma mulher, não sei. De qualquer forma, vou chamá-lo de humano. Não quero me comprometer).

Achou um absurdo, mas lembrou-se do sonho daquela noite, em que abandonava a cidade e ia para o campo.  Deixava de lado a roupa apertada, elegante, sufocante e calorenta que usava todo dia e passava a vestir roupas de algodão. Também andava descalço e passava seus dias cuidando de uma estufa. 



- Um disparate! - o humano pensou ainda deitado, lembrando-se que o sonho lhe trouxera uma quase inebriante sensação de luz do dia sobre a pele do seu rosto.


As cortinas do quarto ainda estavam fechadas e era muito cedo, mas mesmo que tarde fosse, o sol não passaria por ali, porque o apartamento ficava do lado do prédio em que o sol não chegava. No sonho ele morava em uma casa muito ampla e com muita luz. A luz entrava feliz toda manhã. E era ela quem o acordava e não o som estrepitoso do relógio.


- Tolice! - disse o humano para si mesmo, sentindo um aperto no peito - Desse jeito eu iria é ter um câncer de pele!

Ao lembrar-se da hora, estendeu automaticamente, e ainda deitado, a mão até o criado mudo e pegou o celular. Por alguns minutos, sua mente foi absorvida por aquela maquininha e, quando ele percebeu, já estava quase na hora de ir para o trabalho. Nem se dera conta de que o outro ser humano - vulgo cônjuge - que dormia ao seu lado, levantara para fazer um café. Nem se dera conta de que o vulgo cônjuge havia falado algo. Parecia importante, mas ele não se lembrava. 


(Vou fazer um parênteses aqui. O humano dessa história pediu para não contar, mas considero o fato crucial para o entendimento do leitor. O humano acordava toda manhã olhando para  o vulgo cônjuge e pensando em como esse cônjuge havia se tornado tão vulgo pra ele. Mas essa é uma outra história. Só conto porque, segundo o humano, esse era um dos motivos de ele olhar para o celular toda manhã.)


E então voltou a meditar sobre os paradoxos. Pensou que tinha muito para fazer naquele dia, era um humano cheio de tarefas, e que seu tempo era curto. E pensou em quanto tempo ficava por dia naquela maquininha de abdução de pensamento. E que quando sobrava tempo, ele não sabia o que fazer.


- Um contrassenso - refletiu, com o peito apertando um pouco mais - não tem como viver sem celular hoje em dia. 


E lembrou-se do sonho em que ele andava descalço logo pela manhã, procurando plantas, com um cachorro do lado. 




Pensando bem, o sonho parecia ser mais uma outra vida, em que ele sentia uma coisa que não podia sentir aqui, no apartamento pequeno, com sua vida pequena, seu casamento pequeno, seu emprego pequeno, suas ideias pequenas, seus sentimentos pequenos.


- Incongruente! Incompatível! Contraditório! Um absurdo! Desatino! Um despropósito! Uma insensatez! Um erro! - Nesse ponto, ainda deitado, ele levantou o queixo e olhou pra cima, gastando todos os sinônimos de paradoxo que aprendera no Google para xingar. 


(O vulgo cônjuge ouviu o léxico de xingamentos da cozinha, mas preferiu fingir que não ouviu. Não queria se envolver. Já não se importava. O humano tinha se tornado vulgo também para ele.)


As lágrimas desciam copiosamente pelo rosto do humano. Ele se deu conta que na vida do sonho era feliz. Isso era incompatível com a vida que vivia. Era um grande paradoxo. Um verdadeiro paradoxo.


(Mas as lágrimas não duraram muito, diga-se de passagem, porque logo ele ouviu o barulhinho da mensagem chegando no WhatsApp e foi dar uma conferida. Novamente abduzido, deixou o coração de lado e escolheu viver uma vidinha pequena naquele dia também.)





Comentários

Zoraya Cesar disse…
que tristeeeeeee. Tanto mais que a maioria de nós é um pouco - ou bastante - esse humano. Seria bom q a vida dele do outro lado fosse a verdadeira e essa vida dq o pesadelo.
Vc me deixou perturbada...
Albir disse…
Quantas vezes, pela manhã, não temos escolhido uma vidinha pequena também, Nádia?
Paulo Barguil disse…
Nádia, uma grande crônica para nos lembrar da nossa pequenez.

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