NÃO SAIA DAÍ >> Carla Dias


Ela não entende o que acontece. Sentada na cadeira, onde ordenaram: quietinha, não saia daí, usa o artifício de sempre para situações que exigem paciência. Na sua mente, naquele salão de festas que é sua cabeça, repete a tabuada do Um como o avô ensinou e ela jamais esqueceu.

Um vezes um = quem sai desacompanhado. Duas vezes um = casal da casa ao lado. Três vezes um = trio afinando seus instrumentos antes do ensaio. Quatro vezes um =  as paredes do quarto. Cinco vezes um = os dedos da mão direita do vizinho. Seis vezes um = meia dúzia de dentes na boca do freguês. Sete vezes um =  cada dia de uma semana que faz parte de qualquer mês. Oito vezes um: os olhos do quarteto de filhos do francês. Nove vezes um =  semestre e meio à janela. Dez vezes um = a nota máxima que se espera.

É criança que obedece aos adultos, mas isso não significa que concorda com todas as suas ordens. Não concorda com essa, que deixa suas costas ansiosas, desejosas de tocar a maciez do sofá do qual não desgruda os olhos desde que o desconforto começou a tomar conta do seu corpo.

Boceja de vontade de se esparramar naquele sofá.

A mãe foi a primeira dizer quietinha, não saia daí, a voz baixa e arrastada, dando a entender que nem era para discutir o assunto, quanto mais executar a ação proibida. Outros adultos passavam por ela e repetiam a mesma ordem, cada qual com a própria cadência. Gostou de como a Tia Violeta o disse:

Boquinha fechada pra não engolir barata voadora, tá bom? E nada de pés visitando o chão dos outros cômodos da casa.

Chamavam Tia Violeta de louca, mas ela não ligava para isso. Talvez os loucos tenham mesmo um jeito melhor de dar ordens às crianças.

A mãe dela nunca gostou de como seu pai lidava com a neta. Vivia dizendo que a menina cresceria achando que a vida era uma eterna viagem agradável. O que ela ignorava, e o velho sabia que por escolha, é que ele ensinara a neta a respeitar a dor, reconhecer a tristeza, não fugir das tragédias. Ela o acompanhou em vários momentos tristes, muitos deles sem compreender o contexto, e às vezes acabava se rendendo ao choro, quando percebia que era isso que os adultos precisavam fazer, mas reprimiam a necessidade.

O avô a ensinou a não reprimir necessidades nem emoções.

A mãe não gostava, mas o avô vivia dando um jeito de fazer a menina dormir com histórias inventadas, que passavam a morar na memória dela. Ela ficava no colo dele, abraçada ao pescoço do avô, que, vez e outra, pedia a ela que afrouxasse o carinho para que ele respirasse.

Ela adorava as brincadeiras e aprender com o avô. Ele a fazia se sentir inteligente e a ensinou a alimentar um cachorro que se perdeu na casa dele. Tutu fazia a avó tão feliz, que mereceu ganhar um quarto só para ele.

Observa a mãe ir de um lado para o outro. Ela sempre carrega algo: copos, pratos, lenços e as pessoas a pagam com abraços. A avó está sentada no mesmo lugar há horas. A menina conclui que ela também está sob as ordens da mãe.

Não entende porque tem de ficar sentada na cadeira se está acostumada a se esparramar no sofá. Seu corpo pede com urgência o conforto oferecido por ele.

Quando parece que todos se esqueceram dela, a menina decide fazer um movimento. O avô chamaria de ousadia necessária, porque, se for necessário, não deixe de fazer o que tiver de ser feito. Escorrega do assento da cadeira, seus pés tocam o chão. Tem tanta gente na casa, que ela sair do lugar não parece mais tão importante.

Ninguém a percebe. Serpenteia pelos cômodos, passa no quarto e alimenta Tutu com um biscoito que escondeu no bolso do casaco.

Não é domingo, por isso a incomoda ter de usar a roupa de dia de missa. Queria seu vestido leve, de botar sebo nas canelas para encontrar lugar bom onde passar minutos, horas até.

Para à porta, o olhar esmiuçando o lugar. Gosta de encarar as estantes de livros. A biblioteca é seu lugar preferido da casa, porque é onde o avô a ensina o que ninguém mais se atreve, enquanto coloca a invencionice para trabalhar. 

Seu olhar se fixa na grande caixa onde costumava ficar a escrivaninha. Aproxima-se, puxa a cadeira e sobe para ficar à altura necessária. Ele está dormindo, mas o trombone está quieto. Ela sorri ao imaginar que a orquestra esperava que ela chegasse. Ajeita o cabelo dele, pois o avô nunca gostou de cabelo desarrumado. Beija suas bochechas, escala a caixa e se deita ao lado dele, apertadinho. Puxa o braço dele sobre seu corpo, até virar abraço de aconchego.

A mãe, exausta de andar de lá para cá segurando coisas e recebendo abraços, vaga pela casa chamando a menina pelo nome. Ela não responde. Tia Violeta entra na biblioteca e se aproxima da caixa. Ela não faz cara de assombro ao ver a menina. É um sorriso triste, que o avô ensinou que era comum se oferecer em momentos menos felizes. A menina entende o que acontece, ele a preparou para isso, para não fugir. Então, continua ali, acolhida pelo abraço roubado.

Tia Violeta começa a chorar de chamar atenção. Em pouco tempo, todos estão ao redor da caixa. Seus olhares de mar incomodam a menina. A mãe se aproxima e, ao ver a filha abraçada ao seu pai, pergunta se ela entende o que está acontecendo. A menina a chama para perto, exigindo silêncio que não acorde o avô. Então, enrosca os braços no pescoço da mãe e cochicha em seu ouvido:

Escutando o silêncio do descanso da Orquestra Interior do vovô.

Há alguns dias, ela o visitou na biblioteca. Ele dormia sentado naquele sofá no qual agora ela deseja se esparramar. Ela é ainda mais confortável que o da outra sala, que ela teve de passar horas encarando. A sua boca aberta, um livro deitado sobre o peito, como se o coração lesse palavras. Ele roncava esquisito, mas já tinha explicado que engolira um trombone quando criança, depois de brincar de jogo do bafo e perder para o irmão, que adorava traquinagens musicais e o fez engolir o instrumento. O avô jurou que passou uma semana fazendo solos de trombone ao dizer palavras.

Sentou-se ao lado do avô, deitou a cabeça em seu ombro e escutou o que ele chamava de Orquestra Interna fazer seu espetáculo. Dormiu com a música-ronco e acordou, algum tempo depois. Ele olhava para ela, com jeito de quem sabe ler pessoa.

Um dia, minha menina, você terá de escutar o silêncio do descanso da minha Orquestra Interior. Não fique triste com isso. Trombones se calam, outros instrumentos assumem. Há sempre algum som para preencher a vida das pessoas, até mesmo a sua.

O avô lhe ensinou muitas coisas, não apenas a tabuada. Gargalhar com o corpo, por ser quase pecado não aproveitar a eletricidade da alegria. Colecionar imagens raras, guardando na mente as encontradas na rua, protagonizadas por desconhecidos generosos na doação de olhares cúmplices, ensinamentos breves que se leva para a vida. Ela herdou do avô um dos gostos para chamar de o mais deleitoso: encarar pessoas mal-humoradas, insistindo no olhar, até elas devolverem um sorriso de desarme.   

Sempre dá certo, até com sua mãe carregadora de coisas e receptora de abraços.

Imagem © analogicus por Pixabay

Comentários

branco disse…
Carlinha, ler você é ter a sorte de aprender sobre as belezas da vida. Sou uma pessoa de muita sorte!
Zoraya Cesar disse…
Carla, esse é "daqueles". A tristeza, a melancolia e a beleza unidas inextrincavelmente de suas linhas. Irretocável. A lágrima escorrendo discreta, aqui pelo cantinho do olho, cai no sorriso ensinado pelo Avô. Irretocável.
Albir disse…
Fiquei com a sensação de que a menina conta muito bem a história da Carlinha.
Paulo Barguil disse…
Um texto que nos tira, suave e firmemente, de onde estamos. Obrigado, Carla.

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