Celestina >> Alfonsina Salomão

  


Embora não o dissesse, Celestina sabia que não se chamava assim à toa. Pertencia às abóbodas celestes e estava na Terra de passagem - só Deus sabia o que se passara na sua cabeça na hora em que aceitou reencarnar. Deveria estar entediada, talvez tenha pensado que seria divertido ter um corpo, experimentar o mundo através dele. Ou talvez, num voluntarismo impulsivo, oferecera-se para dar uma ajudinha à humanidade. Que erro... se soubesse que seria tão complicado teria ficado por lá, servindo de conselheira aos anjos ou algo que o valha.

 

Às vezes era tomada por uma espécie de nostalgia, uma vontade enorme de não estar mais aqui. Não eram tendências suicidas. Celestina estava longe de ser depressiva, sua mente não abrigava nenhum pensamento mórbido. Era canseira de tudo isto mesmo, somada à crença de que a vida não se resumia ao nosso plano tridimensional. Não precisava de mais nada para sentir um desejo danado de ir para o céu. 

 

Outro dia buscou seu filho na escola e levou-o para brincar com os pequenos camaradas no bosque em frente. Lucas se divertia puxando o galho baixo de uma arvore e soltando-o em seguida. O movimento do galho, o farfalhar das folhas, a admiração nos olhos dos outros garotinhos, faziam-no rir num deleite evidente. Celestina conversava com outra mãe quando o filho desta, Betinho, chegou aborrecido, dizendo que o Lucas estava machucando a arvore, que ele não o ouvia quando pedia para parar. Celestina ficou tocada com a sensibilidade do rapazinho de cinco anos e até concordou, a atitude do Lucas não era gentil com a arvore, mas rapidamente deu de ombros: tratava-se de uma brincadeira de crianças, inofensiva afinal. Contrariado, o Betinho sentou-se no banco ao seu lado começou a falar: 

 

- Você está vendo esta com as asinhas azuis? Ela está olhando para a gente e falando no ouvido da de asinhas verdes, mas eu não entendo a língua delas.

 

A mãe esclareceu:

 

- Ele enxerga as fadas!

 

Celestina agiu com naturalidade, de alguma forma acreditava nas fadas. Chegou a sentir uma pontada de inveja, adoraria enxergar os pequenos seres alados. Experimentou também certo alivio: se naquele bosque urbano, na beira da avenida, havia fadas, nem tudo estava perdido. Ouviu o Betinho discursar sobre as fadinhas que via regularmente no bosque e no pátio da escola, privando-se de contar-lhe que certa vez vira um gnomo. Vai que a mãe  fingia acreditar em fadas para não contradizer o filho, mas na verdade achava que ele estava alucinando? Não queria correr o risco de passar por uma louca.

 

Num dado momento, Betinho disse: “O Gaspar falou que quer morrer logo para encontrar Jesus”. Gaspar era outro coleguinha da sala do Lucas.

 

- O Gaspar faz catecismo - a mãe do Betinho explicou. 

 

Celestina se reconheceu no anseio do Gaspar. Mais uma vez reteve-se, seria bizarro revelar que ela também não via a hora de largar este mundo para trás e viver em santa companhia. Olhou para o Betinho, sentado chateado ao seu lado, imaginou o Gaspar num banco da igreja sonhando acordado com o Cristo, e sentiu-se feliz por seu próprio filho estar gargalhando e chacoalhando um galho de arvore. Neste mundo de brutos, bom mesmo era ter os pés no chão. 

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Quanta delicadeza, Alfonsina. Celestina vai de um extremo a outro, mas sempre na estrada do estranhamento e do enxergar além de si e até preferir que o filho tivesse os pés no chão. Cheio de nuances. Acho que Nadia faria uma análise belíssima a partir desse belo texto!
Albir disse…
Sim, que viagem! A um tempo suave e intensa.
Paulo Barguil disse…
Alfonsina, quem nunca teve momentos de Gaspar ou Celestina? Inclusive quem não acredita que irá encontrar Jesus? Que possamos resgatar o Lucas que mora em nós. Sabe-se lá em que condições...

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