ENTRE O SONO E OS SONS >> Sergio Geia

 


Acordo 3h50 com o edredom no pescoço. Meus pés, que sempre ficam pra fora — tenho um calor horroroso nos pés —, pedem meias. Mas sei que as meias não vão durar meia-hora. Viro de lado. 
 
Primeiro a chuva. Como pensava em sair pra caminhar bem cedo, o barulhinho de chuva batendo no telhado me interessa. Melhor, penso, durmo mais. 
 
Viro do outro lado, e então o galo. Não é possível. E uma musiquinha surge na minha cabeça: Galo cantou às quatro da manhã, céu azulou, na linha do mar. Gruda. Eu quero dormir e a musiquinha lá. Ao fundo, o galo. Eu nunca tinha ouvido um galo por aqui. Sempre ouço o trem, pelo menos de madrugada. Ele passa um pouco longe, a linha férrea fica mais ou menos a três quilômetros daqui, mas o silêncio da cidade me permite ouvi-lo. Agora galo? 
 
Viro novamente. Encaixo o travesseiro. Aperto um pé no outro, coloco as mãos entre os joelhos. 4h20. Preciso escrever uma crônica. Penso em assuntos. Maconha. Descriminalização. Bom. A história de Maurene Lopes que eu tinha lido no jornal, uma lavradora presa por fumar maconha na porta de casa — depois encontraram um grama em sua residência, eu disse UM grama —, condenada a mais de seis anos de prisão em regime fechado por tráfico, e só absolvida quando o processo chegou ao STF, e uma luz iluminou a cabeça do Gilmar Mendes. Lembro da postagem de alguém que defende a proibição citando o antes e o depois da Amy Winehouse, nada mais patético. Lembro da minha mãe na praia enchendo o pastel com pimenta, não quero contar essa história, não agora, aqui, sem ela. 
 
Tento técnicas de meditação. Respiração, mantra, muitas vezes dá certo. Vai dar. Parece que vai, agora vai. Relaxo. Sinto que me entrego, lentamente, lentamente, o sono vem, o silêncio é adorável, adorável, silêncio, silêncio, noto então que não há mais galo, que a chuva parou, que a Clara Nunes foi embora. No melhor dos momentos, eu desperto. 
 
Olho o relógio, 4h53. Faço as contas. Acho que fui dormir às 22h30. Acordei às 3h50. Pouco mais de cinco horas de sono. Não vou dormir mais. Também não vou caminhar. Tá frio. Talvez escreva. Qualquer coisa. Tem horas que a cabeça complica tanto. Entre o sonho e o som, iê, agora é o Belchior. Vai grudar... 
 
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Tem experiência mais humana do que essa fritada de cérebro na madrugada? Quem nunca viveu uma dessas tá vivendo errado.
Nadia Coldebella disse…
Descubra onde mora esse galo e programe um assassinato na madrugada. Agradeça porque foi Clara Nunes e Belchior que grudaram, e não algum funk ou sertanejo universitário. Meu conselho é: não lute. Se conforme. Permaneça deitado sem se estressar. Deixe a mente vagar. Não tem o q fazer msm.
Nadia Coldebella disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Mário Baggio disse…
Minha receita: meio zolpidem. Tiro e queda na insônia. Mas aí não teríamos a sua crônica. Eu torço por mais noites insones em sua vida (hehe).
Ana Raja disse…
Madrugada cheia de gatilhos! Bela crônica.
Zoraya Cesar disse…
Essa foi disparada, DISPARADA (eis uma boa música pra grudar), a melhor crônica de insônia q já vi na vida. E deixe o galo em paz ou vai se ver comigo
Albir disse…
Sorte sua que a insônia venha de galos ou trens! A minha vem de personagens da irmandade da pá! Só não acordo às três porque já não durmo mesmo!
sergio geia disse…
Obrigado, queridas e queridos

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