Caminhava devagar, como se conhecesse bem o terreno. E devia conhecer, a escuridão era densa, quebrada apenas pela fraca luz da lua minguante. Havia postes de luz do outro lado do muro, mas não faziam diferença.
Caminhava devagar, porque ali o tempo tinha suas próprias regras.
Caminhava devagar, porque sabia exatamente os perigos e armadilhas que aguardavam os visitantes.
Era alto e magro, mas musculoso. O cabelo precisava de um corte e a barba estava por fazer. Seu rosto era severo e, o olhar, profundo como o mar que lhe dava cor. Era um homem atraente, e, de certa forma, assustador. No canto de sua boca e no fundo dos olhos podia-se vislumbrar um quê de cansaço, ceticismo, bondade. Não se enganassem, porém; era um Caçador, capaz de eliminar outros seres sem peso na consciência e com uma boa dose de alívio.
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Supreendeu-se ao ver um homem sentado numa das pedras. Irritou-se, também, por não ter percebido sua presença e desviado do caminho. Queria estar sozinho.
Mas lá estava ele, sentado na pedra, olhando para o céu, contando as poucas estrelas. Vestia-se como um vaqueiro e parecia mesmo um. Calça preta justa, um coldre vazio, camisa surrada, colete puído. Botas marrons sujas de terra. E um chapéu velho de abas caídas, a copa amassada. Uma pobre figura, sentada, sozinha, enrolando e desenrolando uma fita azul, daquelas que enfeitam cabelo de mulheres. Era esquálido, as faces encovadas, totalmente baço, encurvado, encolhido.
- Boa noite. Se me permite, quem é você? Nunca te vi – perguntou o Estranho que chegara.
- Boa noite. Estou aqui há pouco tempo. Venho de longe. Demorei para encontrar o que procurava.
- Entendo. Sim, entendo – Olhou, curioso, para a inscrição gravada na pedra, e levantou uma das sobrancelhas, como se o motivo de o vaqueiro estar ali tivesse lhe escapado.
Uma coruja piou ao longe. E um corvo crocitou por perto. O Estranho estendeu o braço. E logo uma grande ave negra voou de uma árvore próxima e acomodou-se em seu ombro. Uma nuvem passou sob a lua, deixando tudo com uma aparência ainda mais fantasmagórica e onírica.
- Você não pertence a esse lugar. O que faz aqui?
O vaqueiro olhou-o longamente. Um olhar triste como o de quem perdeu um grande amor.
- Não quero incomodar ninguém. Por favor, deixe-me ficar.
- Depende. Me diga o que faz aqui.
- Espero.
- Pelo quê?
- Minha história pode ser longa e triste.
- Não tenho pressa. E estou acostumado a tristezas – disse o estranho, fazendo um cafuné no corvo. Sentou-se em outra pedra (não sem, antes, ler o que estava escrito nela).
O vaqueiro começou a falar, a voz lenta e pausada, carregada de passado.
- Há muitos anos, eu morava numa cidade pequena. Era vaqueiro e jogador. Ocupação de vagabundo, diziam. Coisa de gente sem estudo, sem dinheiro, sem futuro. Realmente, eu era isso tudo. Menos vagabundo.
Seu olhar se distanciou para algum lugar inalcançável e um longo silêncio ocupou todo o espaço - nem insetos, pássaros, sapos, nada se ouvia, a não ser o farfalhar dos choupos sob o vento frio que as fazia tremer. O Estranho também nada falou. Aguardou. Como dissera, não tinha pressa.
- Um dia, assaltaram o banco da cidade e mataram o caixa. Alguém disse que o bandido se parecia muito comigo. E todos sabiam que eu estava sempre precisando de dinheiro.
O corvo voou do ombro do homem e foi pousar perto do vaqueiro, interessado pelo desenrolar da história. Nesse momento, algumas sombras feitas de névoa se aproximaram, gemendo ameaçadoramente, famintas. O vaqueiro se sobressaltou, amedrontado. Teria que abandonar seu propósito de novo? Daquelas sombras ninguém escapava. No entanto, o Estranho, sem parecer minimanente assustado, murmurou uma invocação e suas mãos fizeram um gesto elaborado e antigo. Imediatamente os gemidos cessaram e as sombras se dissiparam. O vaqueiro fitou-o com admiração e espanto. Ah, começou a entender o que era aquele homem amigo de corvos. Talvez, dessa vez, ele pudesse ficar até o fim. O silêncio e a paz voltaram.
- Fui preso e levado a julgamento. Você não deve saber, mas naquela época era tudo muito rápido. Se fosse inocente, que o provasse. Sem provas, automaticamente era considerado culpado. Não havia investigações. Eram tempos duros.
O Estranho continuava imóvel, decidindo se acreditaria ou não na história.
- E o fato é que não fui eu.
O Estranho moveu ligeiramente o canto da boca, como se dissesse 'sim, todos se declaram inocentes'.
- Não, não fui eu! Eu era inocente! Nunca encontraram o dinheiro comigo. Eu apenas não pude apresentar meu álibi.
Suspirou tão profudamente, que seu frágil corpo todo tremeu. Curvou-se, os braços em volta de si, como a se abraçar. Emanava imenso sofrimento.
Mais alguns corvos se aproximaram, espalhando-se pelo chão, pelas pedras, ao redor dos dois homens. Uma raposa pequena se aproximou, curiosa com a insólita cena, e resolveu deitar aos pés do Estranho.
Depois de longos instantes imerso em suas lembranças, o vaqueiro se aprumou um pouco e continuou.
- Me enforcaram ao amanhecer. A cidade inteira foi assistir. Gente que me conhecia! Que sabia que eu jamais faria aquela barbaridade. Mas, sem álibi, sem perdão. - ele hesitou um pouco e, com voz rouca, perguntou:
- Você tem ideia do horror de morrer enforcado? Não é rápido, não é indolor. São quase 20 minutos você implorando para morrer logo antes de perder a consciência e sentir sua garganta apertando, apertando...
Ele baixou a cabeça, novamente imerso em memórias. A raposa prendeu a respiração. Os corvos não se mexiam. O tempo parou.
- No meio da multidão, havia algumas mulheres. Todas choraram ou se comoveram de alguma forma, menos uma. Ela não verteu uma lágrima nem demostrou qualquer comoção durante meu enforcamento. Apenas ficou ali, estática como um corpo gelado.
O Estranho esperou. A raposa esperou. Os corvos esperaram. Sabiam que o ápice estava por vir.
- Ela era meu álibi. No momento do assalto estava com ela, mulher casada. Eu nada falei. Naquela época, honra era tudo para uma mulher. Ela seria apedrejada e lançada ao opróbrio. Eu não podia fazer isso com ela, nem mesmo para salvar minha vida.
O vento sacudiu com mais força os choupos. Os corvos sacudiram as asas, barulhentos, a raposinha uivou.
- Depois que fui enterrado, numa colina distante, ela passou o resto da vida a chorar, escondida, sobre meus ossos, sempre usando um um longo véu negro.
- Agora estou aqui, esperando ela chegar. Descobri sua morada, depois de todos esses anos. – E acariciou ternamente a fita de cabelo que tinha nas mãos.
Nesse momento, as nuvens se afastaram e a lua, agora brilhante, iluminou o rosto do vaqueiro, não mais cadavérico e escavado. Era o rosto de um jovem, queixo quadrado e escanhoado, olhos de aço, sorriso franco. As costas eretas, ombros largos, as pernas ligeiramente arqueadas dos que passaram a vida cavalgando. Suas roupas estavam limpas, todo ele resplandecia.
O Estranho percebeu que algo do Outro Lado se aproximava, algo bom.
Chegara a hora.
Levantou-se e, com a mão no peito, despediu-se do vaqueiro, que tocou ligeiramente o chapéu e voltou o olhar, embevecido, para uma luz que saía da lápide onde estivera sentado, e tomava a forma de uma mulher.
Corvos, raposa e Estranho deixaram os amantes em paz. Nenhum deles jamais esqueceria a história do vaqueiro pobretão que morrera para não conspurcar a honra da mulher amada. Nenhum deles jamais esqueceria que a mulher preferira voltar como fantasma a descansar eternamente, para poder, enfim, ficar com seu amado.
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Lucrécio Lucas – esse o nome do Estranho: um homem que andava à noite por cemitérios em busca de informações do Além, que podia afastar espíritos malignos e conversar com os mortos – não gostava de histórias de fantasmas. Geralmente eram lamuriosas e cheias de autocomiseração. E achava sobremaneira covarde a pessoa se apegar a uma vida que não mais lhe pertencia, a aborrecer ou obsediar os viventes. Mas havia exceções.
Resolveu ir para casa. A tênue energia que separava os mundos estava muito alterada para que ele conseguisse trabalhar. Além disso, seu coração estava tão leve, que ele preferiu aproveitar aquele raro momento. Voltou assobiando uma música antiga do Johnny Cash. O amor, pensou, sempre prevalece. Pediria a Padre Tércio para rezar uma missa pelos amantes. Sorriu. Estava feliz.
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Esse história foi contada há muito tempo, e deu origem à música que Lucrécio Lucas lembrou, The Long Black Veil.
Abaixo, a música com a letra e outras aventuras do nosso Caçador de espíritos malignos. Letra da música
aqui
A imagem da raposa com os corvos: cortesia generosa da minha parceira de crimes, digo, aventuras, Nadia Coldebella. Aliás, em breve, Crônicas do Carro e Pá.
Outras aventuras de Lucrécio Lucas
O Livro dos Carregadores - parte 1 – A irmandade dos Carregadores era tão antiga quanto as primeiras palavras escritas. Seus métodos, também.
O Livro dos Carregadores - parte 2 - se um demônio injeta a Morte Azul em um corpo, não há saída. Ou melhor, há, uma.
O Livro dos Carregadores - parte 3 - os Carregadores eram, antes de tudo, afeitos ao estudo e à pesquisa. Mas não eram desprovidos de sagacidade ou coragem. E, mesmo prestes a encontrar a Dama dos Portais para sua viagem eterna, soube a quem invocar em seus últimos momentos.
O Livro dos Carregadores - parte 4 - São Miguel Arcanjo atendera ao apelo do Carregador moribundo. Disposto a vingar-lhe a morte e a recuperar o livro roubado, ele precisava, no entanto, de ajuda humana. E ele sabia bem a quem procurar. Um velho amigo.
O Livro dos Carregadores - parte 5 - enfrentar a morte era sempre uma possibilidade na profissão dele. Mas não era desejável. O problema, é que até os mais experientes cometem erros.
O Livro dos Carregadores - parte seis - Mesmo os mais experientes cometem erros. De ambos os lado do Caminho. Sannara Qaww era poderosa. Mas Lucrécio Lucas era um sobrevivente.
Os Caçadores - um dia da caça, outro do caçador.
I Maledetti- todos malditos: vítimas e algozes
O Gato - parte 1- nem durante as férias ele descansa
O Gato - parte 2- mas a vida e a morte são assim mesmo
Caçadas noite adentro - nem tudo é o que parece; aliás, nada é o que parece
Viúva Negra – quando nem sempre o mau se dá mal
A Amante- a origem do nome do Lucrécio Lucas
A hora dos mortos - parte 1- quando uma Alma pede ajuda
A hora dos mortos - parte 2- quando a Alma recebe a ajuda
Catadores de almas - parte 1 - você pode não acreditar em Catadores de Almas. Mas eles acreditam em você...
Catadores de almas - parte 2 - Se a sua alma for roubada por um Catador de Almas, reze para que as pessoas certas vão ao seu resgate
Catadores de almas - parte 3 - a Morte é companheira de todo Combatente. Mas é sempre melhor quando se sobrevive para celebrar a vitória.
Comentários
Desafio, mesmo, é criar literatura a partir de letras de pagode, funk, rap etc.
P.S.: só avisei que estava sendo irônico para não ser assassinado no texto seguinte de Lady Killer. Este último me fez dar perda total na cueca. Muito sinistro.
(note-se que conto foi escrito com C e não c).
Esse é o resultado para nós, querida Zô, minha companheira de crimes, digo, aventuras. A gente se delícia num fantasminha, mas morre de medo das próprias histórias. Nem Freud explica.
Pra piorar, enquanto eu fazia sua gravura repleta de escuridão, fantasma, túmulos e corvos, o entregador de comida bateu na minha porta e perguntou: esse é o número 666?
G-zuis! Olha onde fui me meter! Dividindo o carro e a pá com a Lady Killer!
Apesar de tanto medo, digo, vigilância, essa sua balada ficou deliciosa! Vc sabe que eu torço para o Lucrécio Lucas encontrar um amor, nem q seja do outro lado. Já pensou? Vivendo feliz até que a morte os junte, abençoados pelo padre Tércio? Pensa nisso, macabramente, ok?
Um Bjo
Fico longos momentos em silêncio tentando realmente entender o que sinto. Mas, no final, concluindo o que concluir, tenho certeza que foi bom, que valeu a pena. Obrigado, do coração
Não bastavam as balas, as flechas, a dinamite, Precisava de defuntos apaixonados, cavaleiros sem corpos, corpos sem almas!
E tinha que ter enforcamento pra eu acordar sufocado com o lençol em volta do pescoço.
Melhor é não dormir!
branco - livro de bolso! amoooo! baita de um elogio esse, hein?
Nádia - kkkkkk, q susto esse! Mas olhe, por mais romântica que eu seja, o Lucrécio Lucas é muito ocupado. Uma vez ele se apaixonou por uma bruxa que o traiu e desde entao anda meio escabriado com relaçoes amorosas. mas, quem sabe, um dia? E Padre Tercio é indipensável!
Nando - seus comentários carinhosos é que aquecem meu coraçáo!
Ana - muito obrigada!
Anônimo - amei esse negócio de chapeu de plumas de corvo. e agradeço achar q sou culta! uau!
Albir - Dom Albir hahahahaha, eu fico ansiosa por seus comentários! Ainda vou juntá-los todos num posfáscio! Rindo muito aqui, como sempre!
Soraya - agradeço! bom saber que passo a impressão de que descrevo com facilidade kkkkk, valeu
Andrè Ferrer - simmm, leu com o ritmo perfeito. Muito obrigada!
Érica - vc depois me explicou o trocadilho: "So romantic ou só romantic ou Zo romantic"
A todos, mais uma vez, sem palavras pra agradecer a leitura e comentários!