Palomita >> Alfonsina Salomão
Escrever requer coragem. Foi o que Palomita pensou quando se assentou na frente do computador naquela noite. Já havia feito todas as tarefas domésticas do dia. Já havia assistido todos os seriados que a interessavam na televisão. Já havia lido mais livros do quê o necessário. Já não aguentava mais conversar com amigos e parentes no telefone. Já não gostava mais de beber. Já não podia mais sair para dançar. Só lhe restava escrever.
Escrever o quê, pensou, quando por fim ligou o computador. Deve ser por isso que as pessoas não escrevem, simplesmente por isso. Sobre política? Não, muito chato. Sobre minha vida? Não, muito entediante. Sobre os vizinhos? Não, muito óbvios. Posso escrever sobre pássaros, seus voos e viagens. Não, muito deprimente.
Trinta e quatro anos haviam passado desde o acidente que a colocara numa cadeira de rodas. Trinta e quatro anos... Parecia ontem. Parecia ontem que ela corria, pulava, saltava, trepava. Miss Adrenalina. Foi assim que uns jovens a chamaram, impressionados pela sua coragem, quando a viram pular do alto de uma cachoeira, desafiando-os a fazer igual. Depois dela uns três ou quatro até pularam, para não ficar mal na fita. Mas fora ela quem iniciara o movimento, por pura provocação. Não havia nada mais delicioso do quê observar um macho numa situação dessas, encurralado entre o medo de se machucar e o medo de perder a virilidade. Ela mesma não sentia medo nenhum nessas horas, só prazer.
Sim, posso escrever sobre isso, decidiu. E começou a digitar as palavras, descrevendo com detalhes o céu azul sem nuvens daquele dia, a luz forte do sol que esquentava, mas não queimava, a aranha cabeluda e peçonhenta que vislumbrara no interior de uma bromélia na trilha da cachoeira. Descreveu o cipó que tentou escalar para mostrar aos amigos como era forte, Tarzan das Minas Gerais, e como em seguida caiu estatelada com a bunda no chão, provocando gargalhadas gerais. Descreveu como, depois de quase quatro horas de caminhada, chegaram ao topo da cachoeira e lágrimas caíram-lhe dos olhos, fazendo eco com a queda d’água.
Palomita se deixou embalar pela descrição de todos estes momentos radiantes. Sentiu-se viva, tirou a blusa de frio, não precisava mais dela, o calor vinha de dentro. Mas de repente parou de digitar. Seu corpo se enrijeceu, o peito apertou, a garganta engoliu seco. Não valia a pena continuar. Tornou a botar a blusa e já ia fechando o computador quando mudou de ideia. Suspirou. É agora ou nunca. Se lançou. Num jato escreveu tudo, palavras e frases se emendaram num fluxo contínuo, dando forma aos fragmentos que habitavam os interstícios do seu pensamento. Há anos era assim: servia o café, escutava pneus; tomava banho, cores misturavam-se ao seu redor; colocava os sapatos, estilhaços de vidro voavam; rodava a chave de casa na porta, o gosto de ferro preenchia sua boca. Qualquer pequena pausa era desculpa para estas interrupções. Era insuportável. Não dava pra seguir assim. Precisava avançar.
Por que naquela noite, uma noite banal, uma noite como todas as outras? Por que não? Quando terminou olhou o relógio. Escrevi tudo em menos de uma hora, surpreendeu-se. Não, durante trinta e quatro anos, corrigiu. Sorriu e foi até a cozinha, preparou um chá, foi dormir. Antes de fechar os olhos consultou o celular, queria saber qual tempo faria amanhã. Dia ensolarado com pancadas de chuva. Perfeito. Podia continuar.
ps: A crônica de hoje não é inédita, trata-se da primeira crônica que publiquei aqui há três anos e meio. Ela integra o projeto Crônica de um ontem. A fotografia é inédita. A tradução do escrito é, aproximadamente : "Por que não deixar irem seus pensamentos intrusivos?". Adoro esta sabedoria das ruas.
Comentários
Acho que só quem já se lançou ou tem um forte desejo pode compreender esse desespero, essa necessidade de se jogar, seja na cachoeira ou nas palavras.
Cheguei a conclusão que o resultado não importa. O que não dá é pra ficar com as palavras na borda, querendo vazar.
Parabéns, mesmo sendo crônica de um ontem, Palomita desopilou.
Beleza de crônica!