GENTE ESTRANHA >> André Ferrer
Foi o trabalho de sempre e a parte de Horácio consistiu em seis dias apenas. Daquela vez, não houve problemas. Os incidentes foram leves — e um deles até providencial. Três incidentes para ser exato.
No segundo dia, o gás de cozinha acabou e ele teve que trocar o botijão. No quarto, aconteceu algo na vizinhança, o que chamou a atenção de todos. Uma viatura esteve no local, mas a polícia se ateve ao acidente na casa que ficava do outro lado da rua. Sequer olhou na direção de Horácio, concentrada na casa onde morava um sujeito que ficava na varanda todas as manhãs. Um sujeito realmente estranho, que usava o mesmo boné verde, surrado, da John Deere, e se comportava de um modo intimidador.
Todo dia — durante ou após o café —, Horácio observava o homem sentado no banco largo pintado de branco. Ficava lá por quase uma hora. Ele parecia olhar o vazio, mas aquilo incomodava Horácio.
As duas casas ficavam uma em frente da outra e ele começou a ficar preocupado com o sujeito ainda no segundo dia. Também, foi naquela manhã que ele descobriu a necessidade de um botijão de gás novo. Realmente, uma grande sorte o gás ter acabado só depois do preparo do café da manhã, uma das tarefas que deviam ser religiosamente efetuadas. Naquele dia, ele tinha conseguido fazer todo o procedimento do início da manhã. Horácio trancou o quarto que ficava no corredor, checou ao redor da casa, vigiou a rua enquanto comia.
Talvez, uma conversa despretensiosa resolvesse aquela cisma. Cruzaria a rua, desejaria bom dia ao sujeito e se apresentaria de um modo insuspeito. O suficiente para se tranquilizar. O senhor John Deere, com certeza, estava limpo. Sua intenção não era bisbilhotar. Apenas precisava pensar um pouco, de manhã, enquanto encarava o vazio.
O terceiro dia foi mais tranquilo. A rotina se fez exatamente como o combinado. Um relógio preciso e silencioso. Às oito horas da manhã, ele foi até o corredor, abriu a porta e a vasilha carregada de alimentos deslizou no ladrilho. Enquanto a comida desaparecia na escuridão do quarto, Horácio aguçou todos os sentidos. Queria captar algo mais do que uma respiração calma e resignada. Uma regularidade que já estivera, horas atrás, bastante agitada.
Horácio ficou tranquilo. No sexto dia, tudo estaria acabado. Fechou a porta, passou a corrente nas argolas e trancou o pesado cadeado. Na sala frontal, colocou-se diante da janela e comeu o seu próprio desjejum. O senhor John Deere permaneceu por menos tempo. Entrou na sua casa e, minutos depois, saiu com um envelope na mão. Caminhou na direção do centro da cidade.
No dia seguinte, Horácio já tinha preparado o desjejum e estava prestes a abrir o cadeado. A vasilha cheia de alimentos, ao lado, sobre uma cadeira. De repente, um estrondo se fez na rua e ecoou através do corredor. Imediatamente, Horácio correu até a sala, mas voltou à porta do quarto. Não. Ele não tinha aberto o cadeado nem desatado a corrente. Por um instante, pensou que tivesse. Então, voltou a apressar-se. Da janela da sala, observou a aglomeração na frente da casa do sr. John Deere. Tratou de abrir a porta discretamente. O suficiente para avaliar a cena. Fechou a porta. Um veículo tinha descido a rua e, de alguma forma, perdera o controle. A frente do caminhão estava enterrada na casa do homem. Sua varanda simplesmente não existia mais.
Horácio resolveu sair para não levantar suspeitas. Afinal, era o morador da frente — ainda que temporário — e precisava demonstrar alguma curiosidade. A viatura da polícia parou no meio da rua. Os socorristas pareciam ocupados no meio dos cacos da varanda. O motorista do caminhão esfregava a cabeça freneticamente e chorava. Tinha acontecido um problema mecânico, ele repetia. Horácio assistia a tudo da sua calçada. Um grupo de moradores fazia comentários enquanto os socorristas demoravam para sair dos escombros. O tempo verbal que os cidadãos usavam indicava o pior.
— Era professor aposentado.
— Morava sozinho.
— Não gostava de gente.
Então, um dos socorristas saiu. Ele saltou o pilar que havia caído sobre a calçada. Fez que não. John Deere tinha morrido. Atrás dele, vieram outros dois homens. Um em cada extremidade da maca.
— Uma pena. Sinto muito — disse Horácio para o grupo de moradores empinhocado na sua calçada. Então, ele se despediu e entrou na casa.
Da janela da sala, Horácio espiou a rua até que os policiais entrassem na viatura e fossem embora. Depois, ele retomou a rotina. Precisava dar de comer e se alimentar. Enquanto se dirigia ao corredor, sentiu vontade de rir. Pensou: se planejado, não sairia tão perfeito! É extraordinário termos conseguido esse disfarce. Ora! Uma casa com um morador estranho e solitário pode chamar a atenção da vizinhança. Algo crucial realmente. Uma preocupação constante para quem faz o que nós fazemos! Um trabalho que nunca é seguro. Que tem tudo para dar errado. É claro que um vizinho pode, cedo ou tarde, desconfiar. Já aconteceu. Sim. Aconteceu e a solução precisou ser a mais drástica possível. De qualquer forma, é sempre um grande risco, mas não agora! Dessa vez, o pessoal escolheu uma casa que fica na frente do senhor John Deere! Um esquisitão. Ora! Toda a vizinhança só tem olhos para ele. Deus o tenha. Um disfarce perfeito. O que é extraordinário.
No corredor, ele abriu o cadeado e desenrolou a corrente. Pegou a vasilha e abriu uma fresta na porta. Agachado, colocou a vasilha no chão e empurrou a comida de leve para a escuridão. Antes que o seu braço estivesse esticado, sentiu um puxão — o terceiro e último incidente antes que tudo acabasse no sexto dia.
Sem a ajuda de Horácio, a bandeja foi arrastada para as profundezas do quarto. Nunca tinha acontecido.
Comentários
De novo aquela sensação de angústia, de ver o sujo, falando do mal lavado e se dando bem. De novo e digo aqui, querendo ver de novo novamente.
Grande abraço!