CHIFRES, TRAUMAS E MORDIDAS >> Albir José Inácio da Silva

 

Estava curado das feridas no coração, o Doutor Hugo, feliz de novo, mas ficaram as cicatrizes na alma. Por isso, apesar da confiança em Luísa, resolveu acompanhá-la algumas vezes à universidade.

 

Ficou tranquilo ao constatar que só havia mulheres no grupo de pesquisa. Intelectuais, com roupas básicas e sóbrias, óculos e sapatos baixos de quem não se importa com aparências e só pensa em coisas importantes como comportamento humano, destino do planeta e desigualdade social.

 

A supervisora da pesquisa era a pós-doc professora Regina, que pareceu a Hugo muito tranquila, embora grave e de poucos sorrisos. Diziam que de poucos amigos também. Tanto melhor, ele pensou, um lugar de trabalho e seriedade, um ambiente seguro para a sua Luísa.

 

A ideia de perdê-la lhe dava taquicardia. Ela o salvara do abismo e dos traumas da traição. Quando ela veio para o seu departamento, ele estava destruído, incapaz de sorrir, ainda que mantivesse o profissionalismo e a competência. Virou um zumbi, um casmurro, como diria Bentinho.

 

A sisudez que afastava os demais não intimidou Luíza. Pelo contrário, ela o olhava nos olhos, mostrava dedicação e generosidade. Até que, numa despedida de final de ano, após algumas taças de vinho, em meio aos cumprimentos, eles se permitiram falar de coisas diferentes do trabalho. Os demais foram se retirando, ela confessou decepções amorosas e ele, num só fôlego, narrou a sua tragédia.

 

Margô tinha sido a razão de sua vida e de sua quase morte. Linda, vaidosa, passava o dia entre lojas, salões de beleza e academias. Tudo ele fazia para agradá-la. Ele mesmo não se cuidava, trabalhava muito, não se exercitava, mas gostava de exibir em público a sua deusa.

 

Um dia, retornando do trabalho, viu luzes no segundo andar da academia e achou que Margô poderia estar lá ainda. Não havia ninguém na portaria e ele subiu as escadas. Música alta, salão vazio e lá estava ela. Atracada com o personal.

 

Luísa ouviu enternecida, abraçou o chefe, ele chorou e, quando retornaram no 2 de janeiro, já eram um casal apaixonado. Pouco tempo ainda ela trabalhou ali. Trabalhava por necessidade, seu interesse era a pesquisa. Estudava à noite, por isso frequentemente parecia abatida.

  

Hugo entendeu que ela merecia mais tempo para fazer o que gostava. Dinheiro pra ele não era problema. Além disso, o ambiente acadêmico era mais seguro para sua amada e tranquilizava mais o seu coração.

 

A tristeza ficou no passado. Luísa trouxe luz para a vida do Doutor Hugo. Ela estudava cada vez mais com a proximidade da apresentação e publicação dos trabalhos. Quando terminava tarde, a professora Regina a deixava em casa. Hugo ficava agradecido pelo cuidado.  Mas ela estava com olheiras e outros sinais de cansaço.  Até uma alergia lhe apareceu na pele. Ele decidiu que ela precisava descansar e reservou final de semana num resort de luxo.

 

Sentado no deck, o embevecido Doutor Hugo admirava a beleza de sua Luíza. Ela subiu a escada da piscina, e ele viu a vermelhidão quase escondida pelo shortkine comprado na loja do hotel. Tinha acabado de incluí-la no plano de saúde e ia marcar dermatologista. Ontem ela explicou que aquilo aparecia desde a infância, às vezes nas nádegas, seios, pescoço e até no rosto.

  

Na suíte, Luísa no chuveiro, Hugo pediu champanhe. O celular dela tocou e ele ignorou. Tocou mais duas vezes. Na foto do zap ele reconheceu a professora Regina e pensou que devia ser importante. Na quarta vez ele atendeu e, antes que pudesse dizer “alô, ela está no banho”, a ínclita professora despejou numa torrente:

 

- Por que não me ligou ontem? E por que demorou a atender? Putinha minha fica sempre disponível! Está de castigo esta semana: sem tapas, sem mordidas e sem beijos!

 

E desligou.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Aí, tadinho, que sina! Contra certas coisas não tem como competir, como sogra e amante do mesmo sexo. É uma luta desigual.

Sinto pelo Dr Hugo, acho q ela sai do resort direto pro psiquiatra. Mas não dá pra negar seu inegável dedo podre, né? Seria trauma de infância?

Agora, há muito pensei q certos escritores tivessem um pezinho no masoquismo, por reclamar de certas histórinhas assustadoras e continuar lendo... Depois vai no comentário dos outros reclamar de carro, pá, cadáver no armário... Aí vai pro médico pedir Rivotril pra continuar lendo as histórias... Bom, depois do dr Hugo, estou convencida de que é masoquismo mesmo.

Brincadeirinha! O texto está show!
Gde abraço
Soraya Jordão disse…
Adorei. Achei incrível que desde o início sabemos que elas terão algo, mas ainda assim o final nos surpreende muito.
Zoraya Cesar disse…
HAHAHAHAHAHAHAH, D. Albir, D. Albir, vc fala de mim e da Condessa, mas sua maldade é mto mais sutil e dolorosa. Sádico kkkkk. Esse é o 3o ou 4o relato em que uma pobre criatura, já toda amarfanhada pelo destino, ainda leva mais traulitada exatamente qd pensa q seu destino terá melhor sorte. HAHAHAHAHAHA. muuuito bom.
André Ferrer disse…
Gostei. As brotoejas foram plantadas no texto e tiveram uma sutil serventia no final. É isso aí Albir. É disso que eu gosto. Belo texto.
Albir disse…
Obrigado, Nádia, Soraya, Zoraya e André!

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