CORTINAS >> Carla Dias
Tinha se acostumado com os estragos provocados pelo sol, nem se incomodava mais com o desbotado no tecido do sofá. Também gostava de dias de chuva, de ver as gotas se atirando contra o vidro da janela. Enfim, gostava de janelas.
Saía de casa meia hora mais cedo, a fim de garantir entrar em um vagão de trem que tivesse um lugar vago à janela. Quando dava errado, chegava ao escritório com o humor trancado, incapaz de cumprimentar os colegas.
Dividia a sala com quatro pessoas, e sua mesa, voltada para a única janela do ambiente, permitia-lhe ficar de cara com a imensidão que se estendia sobre a cidade. Era céu a se perder de vista. Até as construtoras especializadas em prédios entrarem na disputa “vamos ver de quem é o mais alto”. De repente, a janela do escritório dava pra outro escritório e ele começou a se sentir prisioneiro de interiores.
Negociou consigo, quando se atreveu a fazer uma sessão de terapia, a sair ao menos uma vez por semana. Foi assim que nasceu a tradição: jantar fora às quartas. No restaurante preferido, sentava-se sempre à mesma mesa. Se não estava livre, esperava no hall, sentado em um sofá confortável, folheando uma edição de bolso d’A Divina Comédia, de Dante. A espera sempre compensava, porque não se cansava da leitura, tampouco da vista para o maior parque da cidade.
Passou anos a conquistar espaços à janela, mas foi vencido pela modernidade que se apoderou do horizonte. Culpou a si pela incapacidade de entender que cidades crescem em benefício da evolução, mas até a culpa já não lhe causava mais reação.
Observar o que estava à frente se tornou impossível aos que buscavam paisagem. Trocou as cortinas por mais espessas, de cores escuras. As lâmpadas simulavam a luz do dia, iluminavam a escuridão da noite e o acompanhavam em uma aposentadoria imprópria para os que apreciavam janelas, feito ele. Abrir as cortinas se tornou um lançar o olhar aos muros de concreto e à intimidade do outro, e nenhuma das opções o interessava.
Por isso os olhos não mentiram e marejaram, sem considerar vergonha de expô-lo. Um colega de faculdade, no qual esbarrou no dia em que tentou, após meses de reclusão à luz de lâmpadas, dar uma volta pelas ruas da cidade, conseguiu convencê-lo a acompanhá-lo para um almoço. Ele estava confuso, porque o sol se intimidou, não conseguiu ultrapassar o contemporâneo e aquecer os transeuntes. As pessoas pálidas, domando a pressa em uma coreografia de esbarrões.
O restaurante ao qual o colega o levou ficava no mesmo lugar do seu preferido, de janela larga, com vista para o parque, mas não era o mesmo. As memórias que moravam em suas paredes, na qual era exposta uma série de fotografias e textos curtos sobre acontecimentos relacionados a elas, deram lugar a uma mistura de concreto, vidro e aço, e só podia ser acessado, após uma longa viagem, ao menos para ele, de elevador. Ficava na cobertura do prédio de 95 andares, e nos inferiores, os empresários mais poderosos da cidade conduziam seus negócios. O colega pediu um prato de nome extravagante. Ele não se importou. Há um bom tempo, abandonara o companheiro de almoço à mesa, ocupando-se de ligações de trabalho e decisões importantes sobre como ocupar espaços vazios com construções que mudariam o conceito imobiliário da cidade.
Por isso os olhos dele não mentiram e marejaram. Há tempos não enxergava o céu a perder de vista. Aquela luz, aquele azul, a imensidão, o sol se jogando à terra. O parque se tornou um shopping dos que oferecem a experiência de um jardim interno deslumbrante. Nunca entendeu tal matemática. Como um jardim interno poderia ser mais importante e deslumbrante do que um parque público, onde as pessoas caminhavam para espairecer, para se exercitar, para estar perto da natureza?
O colega se aproximou e perguntou se estava tudo bem.
—Tem alguma janela que possa ser aberta nesse restaurante?
Sentia uma imensa vontade de voar.
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