ISSO EU JÁ SABIA >> Albir José Inácio da Silva
O estalo no
degrau interrompeu a respiração dos presentes. A escada caiu sobre o púlpito e
resvalou para o chão em câmara lenta. Mas os cem quilos do diácono Josias foram
mais rápidos na descida. Equilibrado e cuidadoso, Josias não combinava com quedas,
então aquilo se explicava por artes do tinhoso.
Era um tempo de
vacas magras, não havia ainda igrejas-palácios com vidro fumê e aço escovado nem
pastores milionários. Obras, consertos e limpeza ficavam por conta dos mutirões
em que todos os fiéis eram convocados.
Muito trabalho,
mas também a alegria do pertencimento, da convivência fraterna. As irmãs
entravam e saíam com lanches, opiniões e sorrisos; os varões concluíam os
reparos no teto e nas paredes, e nós, os juniores, éramos encarregados da
limpeza. Tudo harmonia e pressa, amanhã, domingo, tinha escola dominical.
O mais graduado
ali era Josias, um diácono de voz macia e gestos suaves que contrastavam com o
vigor dos braços e a obstinação para o trabalho. Tinha também o irmão Manassés,
um cantor que fazia algum sucesso nas igrejas vizinhas e vendia discos de mão
em mão. Suspeitava-se de que ele falava mais que trabalhava.
Não se pode
dizer que havia entre eles rancor, inveja ou qualquer outro sentimento menos
santificado. Eventuais divergências mais ácidas eram disfarçadas com elegância.
Mas falava-se de antiga rivalidade por causa de uma viúva, que acabou casando
com um terceiro menos sisudo e mais abençoado financeiramente.
Os dois eram rigorosos
na disciplina com os mais jovens. Ali não cabiam gargalhadas ou chistes
maldosos. O diácono Josias, tranquilo e didático nas admoestações, e o irmão
Manassés, mais incisivo, vozeirão, que poderia a qualquer momento conduzir o
infrator a uma comissão de disciplina. Nós mesmos nos cutucávamos por uma
risada mais alta ou um excesso de brincadeiras. Ali não era lugar para isso.
Escada para um
lado, diácono para o outro, respirações suspensas, bocas abertas, gestos
interrompidos, silêncio. E a gargalhada. Não se conteve o irmão Manassés. Recobrou
o fôlego, mas nova explosão de riso o sacudiu e jogou sentado no chão. Todos os
olhos estavam nele.
Josias
levantou-se sem maiores danos, assoviando um hino e batendo a camisa com as
mãos.
Sentindo a
censura dos olhares, recompôs-se o irmão Manassés, exagerando nos
cuidados:
- O irmão tá
bem? Machucou? – perguntou enquanto limpava e massageava as costas do outro.
- Não, irmão, machucou
não. Foi até bom porque eu descobri uma coisa – respondeu Josias sem alterar a
voz.
- Descobriu como
Deus é bom, né, irmão? Uma queda dessas podia ter até matado.
- Não, irmão, que
Deus é bom eu já sei há muito tempo. O
que eu descobri hoje é que o irmão é um grande filho da puta.
OBS: Esse
texto integra o Projeto Crônica de Um Ontem e foi publicado
originalmente em 13/07/2020.
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