Uma tarde n'A Feira do Livro >> Sergio Geia

 


Lembro que olhei pela janela do apartamento no centro de São Paulo e vi um pedacinho de céu sobre uma hoste de prédios, ele era azul. Mesmo assim peguei blusa, as previsões eram de queda acentuada de temperatura ao final da tarde e no Pacaembu, imaginei, o vento sopraria feroz. 
 
Fui especialmente para ver e ouvir o que tinha a falar a escritora Aline Bei, que se apresentaria numa mesa no Tablado Caqui. 
 
Com sua literatura, ela já acumula prêmios. Ganhou o Toca Literária, criado pelo escritor Marcelino Freire, com o romance O peso do pássaro morto, onde retoma experiências da infância — um canário morreu em sua mão. Através dele, também foi vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura, em 2018, na categoria melhor romance de autor com menos de 40 anos. Seu segundo livro, Pequena Coreografia do Adeus — o livro que eu queria —, foi finalista do Prêmio Jabuti, em 2022, na categoria romance literário. Quando começou — hoje é autora da Companhia das Letras —, vendia seu livro no Instagram; com uma caixa de som, declamava poemas nas ruas, não tinha medo de colocar o livro debaixo do braço e sair por aí à cata de leitores. 
 
Ao me aproximar do local do evento, já enxergando partes do estádio do Pacaembu, qual não foi a minha surpresa ao ver de longe a praça absolutamente tomada de pessoas ávidas por consumir literatura. Não querendo, mas já sendo bem clichezão, um enorme formigueiro era o que eu via. 
 
Pensei, ainda no banco de trás do Uber. Ano passado saiu uma pesquisa da Câmara Brasileira do Livro que dizia que 84% dos adultos não adquiriram um livro sequer em 2023. Eu já sabia que na América do Sul, quem mais lê é o argentino, seguido do chileno; o brasileiro vem atrás. E se antes o livro competia com a televisão, ou com a vida na rua, hoje compete com a televisão, com a vida na rua, com o streaming, com as redes sociais e, principalmente, com seus próprios preços. A pesquisa da CBL confirma que o brasileiro compra milhões de coisas, menos livros. E é verdade. Aquela tarde na Feira do Livro, exceção. 
 
A voz era conhecida. No mesmo Tablado Caqui, Padre Júlio Lancelotti falava de seus livros infantis que tratam de aporofobia, que quer dizer aversão a pessoas pobres, tema que lhe é caro. Consegui pegar o finalzinho de sua mesa, e saí de lá encantado com a força desse pequenino homem de Deus. 
 
Comprei o livro que eu queria e depois passei na Patuá pra comprar Sonhos e Perdas, da minha amiga talentosíssima Sandra Modesto — o livro é um assombro de bom. Ainda deu tempo de comer um churrasquinho — aqueles espetinhos vendidos na frente de estádios de futebol, banhado em farinha de mandioca; estava uma delícia — e beber um chope. 
 
Aline Bei é atriz e escritora e muitíssimo articulada, escrever para ela é sempre voltar à infância. O que me surpreendeu em Aline foi a profundidade de seu olhar, um olhar para o interior, que é fácil perceber em Pequena Coreografia do Adeus. Compartilhou seus processos internos, especialmente seus processos de criatividade, a teorização sobre eles, a verbalização sofisticada. Falou de clubes de leitura, de estruturas narrativas, de personagens, referências e livros, da adaptação de suas obras para outras linguagens, com um olhar apurado e crítico, ao mesmo tempo doce, como é a sua voz. De presente, para quem acompanhava a mesa, estava na companhia de sua amiga e escritora Morgana Kretzmann — estou enlouquecido para ler Água turva
 
Após a mesa, Aline recebeu leitores e autografou livros. Poucas vezes vi uma escritora tão carinhosa. Recebeu cada um com um abraço, conversou, autografou e ainda posou para fotos. 
 
A blusa não dava conta do vento cortante que aterrissou no Pacaembu. Antes de chamar o Uber, de preferência com ar quente, vi um pouco da mesa no palco da praça, as presenças de Marcelo Rubens Paiva, Patrícia Campos Melo e Luiz Felipe de Alencastro; o tema, os 60 anos do golpe militar. 
 
A feira é um prato cheio e apetitoso para quem consome literatura. Saí de lá saciado de tantos livros e mentes brilhantes — adoraria comer churros de doce de leite antes de ir embora, mas esse eu passei. 
 
 
 
P.S.: 1. A Feira do Livro, organizada pela Revista Quatro Cinco Um, ocorreu em São Paulo, entre os dias 29 de junho e 7 de julho, na Praça Charles Miller, em frente ao icônico estádio do Pacaembu. 2. As mesas citadas nessa crônica, com as presenças de Aline Bei, Morgana Kretzmann, Padre Júlio Lancellotti, Marcelo Rubens Paiva, Patrícia Campos Melo e Luiz Felipe de Alencastro, ocorreram no dia 06/07/2024. 3. Ilustração: Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Essa eu só acompanhei pelo seu Instagram e, agora, pela crônica. É uma delícia renovar a bateria da inspiração e o gosto pela leitura, né? E seu texto me trouxe lembranças da infância, quando meu pai me levava na Bienal. Ô, tempo bom!
Sandra Modesto disse…
Adorei a crônica. Aline Bei é mesmo uma das mais importantes escritoras da literatura contemporânea. Comprei "O peso do pássaro morto" diretamente com a autora. Ela é Muito gentil. Me ofereceu o livro na época do lançamento em 2018, por mensagem no Facebook.
Ah, obrigada por ter comprado o meu livro. Beijão!
Zoraya Cesar disse…
Você escreve tao bem que me senti com vc ali, cheguei a sentir o cheiro das comidas, das pessoas, a vibração do ambiente, o friozinho batendo. Maravilha, como sempre!
Nadia Coldebella disse…
Especialíssima essa crônica que é mais que crônica: ela contém uma crítica literária, uma precisa descrição sobre a feira de livros (serviria para uma reportagem?) e um pouquinho de previsão (ou precisão) do tempo.
Muito grata por compartilhar a experiência!
Albir disse…
Já fiquei interessado em alguns títulos que você citou. Conte-nos mais sobre suas visitas literárias.
sergio geia disse…
Grato, amigas e amigos.

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