PLASME-SE << SORAYA JORDÃO


 

Habitar o agora é uma proeza que demanda persistência e coragem. Por mais que este seja o tempo da solidez, da sustentação da forma e do volume do existir, quando estamos diante dele, sua consistência rochosa pode se mostrar ameaçadora. A concretude da realidade, a imponência do instante favorece o talhar das asas para escape.

O aumento da pressão e da temperatura do hoje é o mote dos processos de fuga. Ora através do refúgio no passado líquido das lembranças, ora no futuro gasoso dos sonhos, expectativas e inseguranças. A busca por outros estados da matéria como condição de respiro pode parecer um percurso natural, mas não necessariamente. Muitas vezes, usamos como atalho caminhos que nos desviam da rota ou sabotam a chegada. Pequenas vielas floridas de ilusão se abrem para dissimular a acidez do agora.

Quantos castelos são construídos de memórias e fantasias às custas da desertificação do presente? Quantas pessoas optam pela mumificação das emoções em função do pavor da decepção? Existir não é somente um processo de solidificação de si. Fazem parte da experiência as mudanças de fases, um certo fluir entre passado, presente e futuro, mas nunca um assento demorado. O movimento é o combustível indispensável à realização dos desejos e enfrentamento das impossibilidades. Nesta perspectiva, nem toda fuga é catastrófica, exemplo disso é a música. Quantas vezes somos abduzidos do estado sólido do agora pelas lembranças líquidas de um tempo feliz resgatadas pela letra de uma canção? Essa é a fusão mais cristalina da matéria. Talvez, só perca em graça para a paixão, quando as recordações do objeto amado aumentam a temperatura, borbulham o pensamento e transformam tudo em um fantasioso gás com poder alucinógeno. 

É comum, nessa situação de enamoramento, ocorrer uma deliciosa vaporização momentânea do eu. Também são muitas as fusões, condensações e calefações que nos atormentam, é verdade. Mas, a nosso favor, felizmente, temos a arte, o mais precioso antídoto à cristalização do medo e evaporação da esperança. 

O passado corre líquido em nossas veias e artérias, a realidade mora na solidez dos ossos, das vísceras e da pele, e o futuro é o poderoso gás que move todo e qualquer pensamento e motivação. Somos o resultado desse fluir da matéria, do deslizar sem medo pelo espaço-tempo. 

Viver exige equilíbrio entre movimento, temperatura, volume e pressão. E o amor é a única coisa capaz de nos tornar plasma.

Comentários

Ana Raja disse…
As medidas certas do viver, os caminhos incertos e os nossos medos. É necessário caminhar e cuidar para que a nossa jornada seja iluminada e segura.
Belo texto, como sempre.
Anônimo disse…
Que profundo
Zoraya Cesar disse…
"É comum, nessa situação de enamoramento, ocorrer uma deliciosa vaporização momentânea do eu." Gostei demais disso. Aliás, o texto todo merece ser relido.
Nadia Coldebella disse…
Concordo que viver exige equilíbrio entre movimento, temperatura, volume e pressão. Mas desacreditei que alguma coisa seja solida e perene nessa vida. Somos um sopro, o momento não tem impacto, a gente nem lembra. Vapor ou liquido, não importa, o tempo é ilusão, assim como o controle. Ansiamos usar nossas asas para fugir, mas acabamos talhando-as em pedra, argila ou madeira e, por causa disso, ficamos presos no chão. O que é essa vida afinal? Como romper as correntes dessa vida e ter liberdade genuína, equilíbrio verdadeiro e solidez real? A realidade é fria, a gente é que nutre a ideia de que ela pode nos aquecer.
Ótimo texto para uma profunda reflexão!!
Albir disse…
Tempo de liberdade e insegurança numa modernidade líquida, como diz Bauman.

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