BLUE ANNE >> Zoraya Cesar

 Azul nem sempre é a cor mais quente. Pode ser, até, glacial. Tudo depende do ponto de vista do narrador.

Atençâo: contém cenas de violência. 

Madrugada. Àquela hora, poucas pessoas se aventurariam a procurar um bar exclusivo, nos recônditos da cidade. Num deles. uma mulher solitária bebia silenciosamente seu café. 

Grandes óculos escuros escondiam seus olhos e mechas de cabelo castanho cobriam parte da face. Desse quase nada entrevisto, arriscaríamos dizer que era bonita. Sorvia o café lentamente, gole a gole, sem afastar a xícara dos lábios. Não usava jóias e não se via bolsa por perto – provavelmente tinha crédito na casa.

A cena lembrava uma pintura de Ben Aronson – as roupas da mulher, o banco no qual sentava, a mesinha de café à frente e o painel da parede, todos praticamente no mesmo tom de azul.  A excetuar esse domínio azul prussiano, apenas um painel bege, a xícara e os sapatos brancos – esses, uma espécie de tênis feitos sob encomenda, não encontrados em lojas comuns. 

A mulher, quase imóvel, parecia mesmo a imagem da serenidade. 

Naquele lugar desconhecido às pessoas comuns, ninguém se surpreendia com o uso de óculos escuros à noite em um ambiente fechado, ou com a presença de uma mulher sozinha àquela hora tardia. No High Plains Drifter todos eram irmãos em excentricidade – seja na aparência ou nas profissões. Se estava ali, pertencia a alguma confraria à margem da sociedade. Era, portanto, bem vindo. 

Assim, a mancha arroxeada que intumescia um dos olhos da mulher passou despercebida. Ela mesma não se lembraria mais da aparência de cogumelo morto que trazia ao rosto não fosse o constante latejar doloroso a despertar-lhe a consciência. 

As mãos - a esquerda repousando sobre as pernas cruzadas, e a direita, segurando a xícara de café – eram frágeis e delicadas, de dedos longos e unhas curtas, sem esmalte. Mãos feitas para os movimentos finos, ou para servirem de modelo para jóias de alto luxo. 

Eram, no entanto, treinadas para atirar, estrangular, matar sob as mais diversas formas. 

A essa altura, ousaremos perguntar o que provocou o olho roxo e o tremor, ainda que despercebido, de suas mãos? 

Tudo começou com gritos e empurrões do companheiro, até então muito romântico. De início, ela apenas avisou que ele parasse, sem tomar qualquer outra medida, pois achava que era sua culpa; afinal, nunca vivera com ninguém antes do Beto. 

Quando ela finalmente o expulsou de casa, Beto reagiu mal. Pensou que a esposa era apenas um enfermeira indefesa, sem eira nem beira. Jamais passaria por sua cabeça que a doce Anne era contratada por uma firma de assassinos, sabotadores e sequestradores de aluguel. Passemos, então, a outra pergunta: como uma mulher dessas permitiu-se ficar com um sujeito como Beto?

O que responder? São tantas as possibilidades, impossível saber ao certo. Talvez os gritos de seu relógio biológico fizeram-na ansiar por um relacionamento sólido. Beto parecia ser uma boa escolha e o sexo sempre fora muito bom. Até Beto mostrar sua verdadeira face. 

Naquela – fatídica, por que não? - noite, ele, sabemos, reagiu mal. Deu-lhe um soco no rosto, que só não a atingiu em cheio porque seus reflexos não lhe falharam e ela se desviou em tempo de evitar um estrago maior. Qualquer outra mulher teria sucumbido.

Não Anne. Cega de ódio – mais por ter sido surpreendida, diga-se – revidou. Subjugou o marido e amarrou-o. Fê-lo ingerir todo o uísque da casa (não perguntem como; ela tinha seus métodos). Em seguida, provocou-lhe  o vômito, tapando a boca e o nariz do marido. Anne consciente do que fazia. Aliás, já fizera algumas vezes.

Ao fim, ela o desamarrou, deixando-o caído da maneira a simular um acidente – bebeu demais e sufocou no próprio vômito. Sabia muito bem como esconder vestígios, forjar provas, enganar a perícia. Sabia fazer muitas coisas incomuns. Só não sabia ainda como se envolvera com aquele safado. Bem, isso não era mais problema.  

Ligou para a firma. O pessoal do administrativo arranjaria toda a situação e lhe daria um álibi incontestável.  Vestiu-se de azul, sua cor preferida, que sempre usava quando em missão, e saiu. Precisava de sossego.  

Blue Motorcycle:
 tequila, rum,
vodca, gin, soda,
Blue Curaçao
Saboreando o café, concluiu que errara duas vezes: quando suportara o primeiro grito; e quando desejara uma vida normal. Ela era Anne, a Mensageira da Morte! O que a fizera pensar que poderia ter uma vida normal? “Gosto do que faço, sou boa no que faço. Detesto trabalho burocrático. Nunca me casarei, nem terei filhos, e provavelmente morrerei violentamente, que é o destino de boa parte dos Mensageiros da minha linha.”

Vida normal o cacete. Isso não foi feito pra mim. Mas acho que vou voltar à terapia.

Pediu uma dose de Blue Motorcycle. Para combinar comigo, pensou. 

Sorriu. A vida era boa. E tudo ficaria bem. Seu lado matador vencera, mais uma vez. 

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Essa história faz parte do projeto CRÔNICA DE UM ONTEM e foi publicada originalmente no Crônica do Dia em 1º de dezembro de 2017 

Quadro: Coffee Break, de Ben Aronson (Pinterest)

High Plains Drifter - western estrelado por Clint Eastwood, com título em português O Estranho sem nome (ou, em algumas versões, O Pistoleiro do Diabo)

Comentários

André Ferrer disse…
Antes de ler um texto da Zoraya, eu sempre pergunto sobre qual lição terei. Uma aventura curta da assassina de azul ensina tantas coisas! Aliás, eu aprendo muito com textos curtos. Sempre. Esse não foi diferente. A sua narrativa baseada nas suposições da Anne (sobre como terminou com um cara daqueles) é um ingrediente envolvente. Muitos detalhes educativos. Necessários. Todo escritor precisa. Enfim, apresentou-me Aronson.
branco disse…
Lady Killer tem antecedentes como contista. Ótimos antecedentes por sinal. Eis um exemplo!
Marcio disse…
Eu acho que essa menina vai acabar com problemas de sono, se continuar a tomar café em espeluncas sórdidas, durante as madrugadas.

Para quem faz escolhas como essa, não surpreende aceitar Beto para uma vida a dois.
Nadia Coldebella disse…
Essa é uma pergunta que todo mundo já fez um dia: como encontrei uma pessoa dessas? Pode derivar para "como parei aqui" ou numa versão mais livre, "onde errei a curva?".
Seja qual for a dúvida, é só chamar Lady Killer, a justiceira, que armada de sua caneta mortal, encontrará uma solução sem deixar vestígios nem suspeitos. Nada de rabo preso. E no caso dessa sua amiga aqui, sou solicita: empresto o carro e a pá. Ou talvez te contrate. Vou pensar.
Gde Bjo!
Anônimo disse…
Nunca sabemos a reação de humanos e animais. Uma mulher então mais ainda! Se aprontar, vaze!
Márcia Bessa disse…
Minha querida amiga Zo, fico sempre fascinada com seus textos, são sempre tão fantasiosos mas ao mesmo tempo tão carregados de nossa realidade. Esse malandro se meteu com a enfermeira errada. Beijos!
Albir disse…
A história traz uma advertência: "Atenção, contém cenas de violência!"
Não diga, Zoraya! Que surpresa!
Imagino que a briga começou porque ele lavou, mas não secou a louça.
E não bastava espancar o Beto? Precisava afogar no próprio vômito?
Tá difícil!
Soraya Jordão disse…
Imagino a analista ouvindo todas as tretas...rs
Jander Minesso disse…
Violência doméstica é um tema pesado, mas pelo menos essa história teve um quase final feliz. Se o cagaço do revide fosse maior, talvez muitos homens pensassem duas vezes. Uma pena, mas tem horas que a dor ensina mais que o amor.
Zoraya Cesar disse…
Pessoal, valeu demais. Amei os comentários!

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