ENTÃO, O LIVRO >> Carla Dias


Há muito eu vinha lidando com a poesia e tentando saber mais sobre música. Até ali, elas caminhavam juntas, não misturadas, ainda que as canções tenham forjado minha curiosidade sobre combinar palavras em uma coreografia de emoções, desapontamentos, um abrandar para depois desocupar de silêncio. E os barulhos internos eram muitos.   

Encarei uma variedade de surpresas, boas e ruins. Apesar de ser uma cadência que não muda — um vaivém que não escolhe a presa, apenas a abocanha, ora provedora de sorrisos ora incitadora de prantos —, eu suspeitava que naquela casa moravam outros, além de mim.

Escrever resolvia a expectativa da qual nem sabia dizer o nome. Criar era modular verdades que se misturavam nas salas de estar, saídas de diferentes, encontrando-se nos afins, como se fossem abajures de iluminar caminho.

O dia em que compreendi que canções podiam dizer do jeito que eu tentava dizer e não conseguia, foi na minha terra mesmo, Santo André, lá no ABC Paulista. Foi olhando para um palco de onde vinha música de apetecer espírito torto e palavras que eu ainda não sabia ser possível serem ditas daquele jeito. Foi ali que libertei minha poesia das rimas de sempre, enviuvei minhas certezas de seus fantasmas, libertei-me da linearidade do pensamento.

Gostamos de contar sobre mudanças significativas na nossa história, momentos cruciais. Na minha, aquele sempre será lembrado como o dia em que minha mente conversou diretamente com o meu coração, que decidiu abrir as asas da minha percepção. Claro que poderia resumir tudo a uma declaração: o dia em que conheci a música e a poesia de Kléber Albuquerque. 

Um amigo, certa vez, questionou porque eu sempre escrevia sobre os shows do artista. Expliquei que foi ali que compreendi a beleza da música misturada com (ou misturando a) poesia, mas de um jeito que não mantinha o sentimento preso a uma definição organizada, como se ele morasse em uma prateleira de supermercado.

A vida é bagunçada e nem sempre isso é ruim. 

Ali mesmo, na barra dos anos 1990, pensei em como seria bacana folhear as páginas da poesia de Kléber Albuquerque; observar a sonoridade da coreografia das palavras dele estampada no papel. Carreguei esse pensamento comigo por muito tempo e, finalmente, voltarei a nossa cidade para realizá-lo. Abraçarei o amigo, escutarei sua música (trilha sonora da minha caminhada) e entregarei a ele o “Eu não sei falar de amor”, o livro... dele.





Comentários

Nadia Coldebella disse…
Carla, que lindo ver vc escrevendo na primeira pessoa! Quero mais!

Eu acho que a poesia permite a descoberta de emoções completamente diferentes daquelas trazidas pela prosa. Se eu fosse comparar com estilos de pintura, a poesia seria como a aquarela, fluida, sem controle, mesmo se dentro de uma métrica. Eu não entendo de música, só dá sensação que ela causa. A música conversa em outro nível, naquele dos subentendidos e se a poesia se casa com a música, só pode falar para alma, espírito e coração... Ela reverbera.

Então é emocionante ver vc contando isso em primeira pessoa. Quem te acompanha aqui sabe do seu pezinho na música. Então é lindo ver vc falar tão solta na primeira pessoa de uma pessoa que toca tão profundamente. Uma verdadeira poesia.

Gde abç
Jander Minesso disse…
Esse jeito que você tem de pegar as lembranças no colo é uma coisa linda de se ver e ler. Bela homenagem, Carlandreia.
Zoraya Cesar disse…
A sua sensibilidade aflora e se espalha em todas as direções. Onde tem beleza, vc vê e acolhe e mostra pra todo mundo. Onde não tem, vc coloca. Uma dança com o belo e o delicado.
Albir disse…
Que maravilha essas suas lembranças autobiográficas. Conte-nos mais.
Soraya Jordão disse…
Achei sensacional te encontrar nas linhas do seu texto. Sentir a pele da sua existência. Amei! 😍

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