AMOR FRATERNO >>> NÁDIA COLDEBELLA



Maria e Amélia pararam o carro. O local estava escuro e deserto. Ninguém, nem uma luzinha de casa perdida no meio daquele lugar abandonado e difícil de ser achado. Maria, mais forte, abriu o bagageiro e começou a puxar uma grande sacola preta. 

- Ajude, Amélia.

- Está pesado - de repente, ela recuou assustada - Olha, Maria, se mexeu! 

Enquanto a respiração ansiosa da irmã preenchia o silêncio da noite, Maria observou, por alguns momentos, a massa disforme. Não satisfeita, abriu o saco e tocou no cadáver. Frio e rijo como pedra.

- Você é uma idiota, Amélia. Está vendo coisas. Vamos. Pegue ali, daquele lado. É mais leve.

- O que a gente vai fazer? - Zangada, Amélia bufou, enquanto tentava coordenar seus movimentos com os da irmã e arrastar o peso para o meio do capinzal. 

Maria sentiu raiva daquela mulher infantil, sempre insatisfeita, exigente e descontente. 

- Espere aí - disse asperamente - você já vai ver. - Maria deixou-a com a sacola e foi até o carro. - Segure. - Entregou uma pá para Amélia. Depois, se dirigiu mais e mais para dentro do capim, cutucando o chão com a pá, procurando uma área de terra macia. Então voltou. - Amélia, a gente precisa levantá-lo. Não dá pra arrastar e deixar marcas no capim. 

- Fala sério, Maria! Ele é pesado! 

- Cala a boca Amélia e venha aqui me ajudar. - As duas fizeram um grande esforço para levantar o corpo, mas, no fim, foi Maria quem carregou a maior parte do peso. Chegaram ao local de terra fofa e soltaram o saco preto no chão. - Agora cave. 

- Ai, meu Deus! - Aborrecida, Amélia começou a cavar. Iluminada pela luz da lua, Maria pode ver a palidez no rosto da irmã, contrastando com as marcas roxas dos socos recentes e recorrentes. Ali, cavando, sob a luz branca do luar, Amélia parecia mais alma penada do que gente. 

- Não reclame, Amélia. Cave. 

- Tá bom, tá bom. 

- Agora já chega. Me ajude aqui. Empurre para a cova. - as duas arrastaram a sacola preta e a deixaram tombar no buraco.

- Deu, deu, deu, Maria. - Amélia endireitou a coluna que fez um “clec” - E se alguém achar? 

- Espera aí. - Maria deu meia volta e seguiu novamente em direção ao carro, não sem perceber a contrariedade estampada no rosto assustado da guardiã da cova. Voltou com um galão e esparramou o líquido sobre o conteúdo da sacola. 

- Olha só, Amélia. Agora ninguém vai saber. - Estendeu a caixa de fósforo para a irmã. - Acenda o fósforo. 

- Eu? Porque eu? Faz você. 

- É a sua vida aí nessa cova. Foi você que fez isso. Acenda o fósforo. - Maria pronunciou a última frase com os dentes cerrados, desejando, em seu íntimo, que a irmã colocasse fogo em si própria. 

- Eu vou pro inferno, Maria - Maria acenou positivamente com a cabeça. Amélia acendeu o fósforo e ateou fogo à sacola. - Não precisava ser assim. - Começou choramingar baixo, para desesperar-se em seguida, mas logo se conteve, ao ser fuzilada pelos olhos raivosos da irmã. 

Nos quinze minutos que se seguiram, as duas permaneceram em silêncio, observando ora o fogo, ora os arredores. Um cheiro de carne queimada subia às suas narinas. Maria movia-se vagarosamente em volta da cova, como numa dança, e Amélia teve a impressão de que ela era algum tipo de bruxa realizando um ritual. O fogo começou a se extinguir e Amélia começou a chorar baixinho, para cumprir com sua obrigação. Afinal, que tipo de gente não chora pelos seus mortos? O fato é que não sentia nenhum arrependimento. Maria estendeu-lhe a pá.

- Pronto. Ajude aqui. - As duas começam a cobrir o buraco. - Ninguém vai saber quem ele é. Acabou.

- E agora, como vai ser? - a voz de Amélia era de lamentação. 

- Não sei, Amélia. - Maria gritou, exasperada com a criatura egoísta a sua frente. 

- E se alguém perguntar? 

- Conte o que sempre acontece. Ele bebeu, te espancou e foi embora. Como sempre. - Então fixou os olhos na irmã e sua voz soou com desprezo. - Olhe seu rosto! - Amélia passou a mão no rosto e pode sentir a dor - Você acha mesmo que alguém vai se importar com ele? - Além de mais forte, Maria era também mais inteligente. 

- Se eu tivesse te ouvido, Maria, meu marido não ia acabar morto, queimado e enterrado numa cova. - Maria suspirou. Estava cansada. 

- Vamos, Amélia. - Maria recolheu as pás e o galão. Olhou ao redor, para certificar-se de que não estavam esquecendo nada e de que não eram vistas - Precisamos limpar o carro e a casa que você sujou. E sumir com essas roupas - Desde quando eram crianças, era Maria quem aguentava os rompantes da irmã, consertava seus deslizes e a protegia da fúria dos pais, muitas vezes apanhando em seu lugar. 

 - Você sim, Maria, é que é mulher de verdade. - Amélia jogou-se no pescoço da irmã, abraçando-a, num gesto inesperado de ternura. 

Um leve sorriso de satisfação iluminou a face de Maria. Sob a luz da lua, seguiram, apaziguadas, em meio ao capim em direção ao carro.


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Esta crônica é parte integrante do projeto Cronicas de um Ontem, publicada pela primeira vez em 19 de novembro de 2019. Pode ser lida aqui. A aquarela que ilustra a primeira publicação e a atual é da autora.

Comentários

André Ferrer disse…
Um dos clássicos da Irmandade Da Pá. Olha! Que tal uma compilação de textos, publicada em livro, com esse título? Texto fofinho não entra.
Jander Minesso disse…
Começo a dar razão para a Zoraya. Mas se forem fazer algo comigo, posso pedir pra ser algo indolor? Grato.
Zoraya Cesar disse…
Ahhh, um típico e clássico conto da Irmandade da Pá, inesquecível!
André, já estamos pensando nisso, e, como disse, vc, como amigo da Blue Anne, vai participar.
Jander, não se preocupe. Só nao piser na bola hehehehehe.

Countess, está lançada a primeira porção de terra na cova dos impenitentes. Vou botar gasolina no carro.
Anônimo disse…
Fiquei pensando na Maria que se meteu numa furada para ajudar Amélia que escolheu viver a furada…. Soraya
Albir disse…
Uma artista que pinta aquarela tão linda não deveria fazer dissimuladas ameaças à humanidade, sob aplausos da cúmplice!

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