TECELÃS DA EXISTÊNCIA >> Soraya Jordão
A invisibilidade se estabelece pelo fechamento da avenida onde desfilam as palavras, os registros, os “causos” do passado. Os exemplos são incontáveis, sobretudo, quando nos referimos às mulheres. Muitas fizeram história com coragem e garra, mas foram soterradas pelo amordaçamento histórico. Exemplo disso, aproveitando os ânimos olímpicos, é a atleta brasileira Irenice Maria Rodrigues, mulher negra, pobre e recordista brasileira do atletismo na corrida dos 400 e 800 metros. Enfrentou a ditadura militar, liderou, em 1967, uma greve contra o Comitê Olímpico Brasileiro, pleiteando melhorias nas condições oferecidas aos atletas negros e a suspensão das restrições imposta às mulheres para participação em modalidades destinadas, exclusivamente, aos homens. Sua luta e determinação lhe rendeu o direito de inscrição na corrida dos 800m, nos Jogos Olímpicos de 1968, na cidade do México, abrindo assim o caminho para todas as outras que hoje disputam nessa modalidade.
Outra atleta que merece ser lembrada é Melânia Luz, velocista e primeira mulher preta a integrar a delegação brasileira nas Olimpíadas de Londres em 1948. Antes dela, isso não parecia possível.
Quantas de nós conhecem essas trajetórias, feitos e conquistas?
Muito do que nos é possível hoje é fruto da força de outras mulheres que não se curvaram diante dos fatos.
Alguém já ouviu falar de Maria Felipa de Oliveira, a Maria Doze Homens? Essa capoeirista foi uma figura central na batalha de Itaparica e na luta contra os portugueses pela Independência da Bahia em 1823.
Por que será que essas heroínas não moram nos livros?
Estou convencida de que a narrativa oral e a escrita são abrigos de resistência e eternidade. Assumi para mim esse exercício: sempre que ouço ou leio algo sobre alguém que resistiu, abriu portas e janelas nesse mundo cheio de injustiças, preconceitos e favoritismos, passo adiante a história, divulgo, seja contando para a família, amigos, vizinhos, seja escrevendo uma crônica. Sinto como se colocasse flores no túmulo dessas pessoas que não se furtaram ao defender seus sonhos.
Ainda refletia sobre tudo isso quando uma cena na televisão me despertou para outra ponta da mesma questão, não exatamente sobre eternidade, mas invalidação ou homicídio doloso de um fato pela indiferença e silenciamento do ato. Refiro-me à boxeadora congolesa, Marcelat Sakobi. Esse é seu nome e faço questão de citá-lo.
Ao final da sua luta de boxe, nas Olimpíadas de Paris de 2024, num ato de bravura e desespero, fez um gesto simbólico para denunciar a violência em curso em seu país.
Qual será o preço que ela pagará por sua coragem? O quanto ela conta com a nossa reação diante disso? Individualmente, não podemos resolver a questão, é claro, mas podemos colaborar dando visibilidade, volume, espaço nas conversas, nas postagens, comentando, compartilhando, colaborando com os movimentos sociais envolvidos nas questões relacionadas à violência, ao abuso, ao feminicídio.
Quanto mais falarmos desse episódio, mais pessoas saberão que as mulheres sofrem violência no Congo. Outras vítimas saberão que é possível denunciar assim como ela fez. Tantas mais descobrirão que é possível buscar saídas para situações de abuso e opressão. Mas, se não falarmos, comentarmos, divulgarmos, a atitude corajosa de Marcelat Sakobi terá sido em vão. A consequência em cascata, ainda mais desastrosa, que se estabelece a partir da invisibilidade de sua atitude é a certeza, para todas as outras mulheres em situação de vulnerabilidade e risco, de que o melhor é calar-se, pois não há saída.
Eu sei que essa crônica alcançará algumas poucas pessoas, mas, se algumas dessas pessoas comentarem sobre essas mulheres com outras mulheres e essas comentarem com mais algumas, teceremos uma teia de discurso capaz de fazer deslizar pela malha do tempo a importância da ação, união e resistência para alcance da liberdade e igualdade de condições e oportunidades.
A narrativa oral também é uma poderosa ferramenta de denúncia, de mudança e de perenidade. Aliás, incluo também nesse rol, o poder da fofoca. Há uns anos, li um artigo que dizia que a fofoca, em tempos idos, ajudou as mulheres a evitarem ciladas amorosas, pois elas falavam entre si sobre os homens, suas mentiras e canalhices e isso fazia com que elas ampliassem o conhecimento a respeito das artimanhas e conseguissem se defender.
Não à toa, carregamos o estigma de falar demais. Creio que essa é a nossa salvação. Falar, falar, falar, cada vez mais umas com as outras. É possível que essa seja nossa arma letal e maior poder de resistência. Falemos mais sobre nós do que sobre nossos corpos, roupas e bolsas. Falemos sobre as mulheres que batalham, sonham, ousam e denunciam.
Cada uma luta com o arsenal que tem. Maria doze homens é prova disso. Pesquisem sua história, descubram sua engenhosidade, contem para outras de nós. É de palavra em palavra que tecemos nossa resistência.
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