TECELÃS DA EXISTÊNCIA >> Soraya Jordão


Faz uns dias que têm me ocupado a mente os caminhos possíveis para a construção de uma eternidade ou, pelo menos, a mínima certeza de permanência no discurso social para além do tempo regulamentar do viver. Nesta reflexão, me apercebi de que algumas ferramentas podem favorecer o processo porque são potenciais eternizadoras. São elas: a escrita, a pintura, a música, um grande feito ou uma descoberta revolucionária. O amor, a fotografia e os esportes também entram nesta lista.  Afinal, eternidade é registro, memória, oralização, relato e eco na malha do tempo. A eternidade não se impõe no grito, mas no sussurro da lembrança. Para isso, dependemos da colaboração de quem continua a jornada por aqui. São eles que contarão sobre nós, nos trarão a vida pelo corpo da palavra. Sem isso, o projeto fracassa. Mas será que a intensidade das relações vividas é o suficiente para conquistar um lugar cativo no banquete das memórias e narrativas? Creio que não. Interesses camuflados podem se sobrepor a tudo e a todos e colocar em ação um silenciamento intencionado, um castigo de esquecimento perene. Um certo aborto pós-morte.

A invisibilidade se estabelece pelo fechamento da avenida onde desfilam as palavras, os registros, os “causos” do passado. Os exemplos são incontáveis, sobretudo, quando nos referimos às mulheres.  Muitas fizeram história com coragem e garra, mas foram soterradas pelo amordaçamento histórico. Exemplo disso, aproveitando os ânimos olímpicos, é a atleta brasileira Irenice Maria Rodrigues, mulher negra, pobre e recordista brasileira do atletismo na corrida dos 400 e 800 metros. Enfrentou a ditadura militar, liderou, em 1967, uma greve contra o Comitê Olímpico Brasileiro, pleiteando melhorias nas condições oferecidas aos atletas negros e a suspensão das restrições imposta às mulheres para participação em modalidades destinadas, exclusivamente, aos homens.  Sua luta e determinação lhe rendeu o direito de inscrição na corrida dos 800m, nos Jogos Olímpicos de 1968, na cidade do México, abrindo assim o caminho para todas as outras que hoje disputam nessa modalidade.

Outra atleta que merece ser lembrada é Melânia Luz, velocista e primeira mulher preta a integrar a delegação brasileira nas Olimpíadas de Londres em 1948. Antes dela, isso não parecia possível.

Quantas de nós conhecem essas trajetórias, feitos e conquistas? 

Muito do que nos é possível hoje é fruto da força de outras mulheres que não se curvaram diante dos fatos.

Alguém já ouviu falar de Maria Felipa de Oliveira, a Maria Doze Homens? Essa capoeirista foi uma figura central na batalha de Itaparica e na luta contra os portugueses pela Independência da Bahia em 1823.

Por que será que essas heroínas não moram nos livros? 

Estou convencida de que a narrativa oral e a escrita são abrigos de resistência e eternidade.  Assumi para mim esse exercício: sempre que ouço ou leio algo sobre alguém que resistiu, abriu portas e janelas nesse mundo cheio de injustiças, preconceitos e favoritismos, passo adiante a história, divulgo, seja contando para a família, amigos, vizinhos, seja escrevendo uma crônica. Sinto como se colocasse flores no túmulo dessas pessoas que não se furtaram ao defender seus sonhos. 

Ainda refletia sobre tudo isso quando uma cena na televisão me despertou para outra ponta da mesma questão, não exatamente sobre eternidade, mas invalidação ou homicídio doloso de um fato pela indiferença e silenciamento do ato. Refiro-me à boxeadora congolesa, Marcelat Sakobi. Esse é seu nome e faço questão de citá-lo. 

Ao final da sua luta de boxe, nas Olimpíadas de Paris de 2024, num ato de bravura e desespero, fez um gesto simbólico para denunciar a violência em curso em seu país. 

Qual será o preço que ela pagará por sua coragem? O quanto ela conta com a nossa reação diante disso? Individualmente, não podemos resolver a questão, é claro, mas podemos colaborar dando visibilidade, volume, espaço nas conversas, nas postagens, comentando, compartilhando, colaborando com os movimentos sociais envolvidos nas questões relacionadas à violência, ao abuso, ao feminicídio. 

Quanto mais falarmos desse episódio, mais pessoas saberão que as mulheres sofrem violência no Congo. Outras vítimas saberão que é possível denunciar assim como ela fez. Tantas mais descobrirão que é possível buscar saídas para situações de abuso e opressão. Mas, se não falarmos, comentarmos, divulgarmos, a atitude corajosa de Marcelat Sakobi terá sido em vão. A consequência em cascata, ainda mais desastrosa, que se estabelece a partir da invisibilidade de sua atitude é a certeza, para todas as outras mulheres em situação de vulnerabilidade e risco, de que o melhor é calar-se, pois não há saída.  

Eu sei que essa crônica alcançará algumas poucas pessoas, mas, se algumas dessas pessoas comentarem sobre essas mulheres com outras mulheres e essas comentarem com mais algumas, teceremos uma teia de discurso capaz de fazer deslizar pela malha do tempo a importância da ação, união e resistência para alcance da liberdade e igualdade de condições e oportunidades. 

A narrativa oral também é uma poderosa ferramenta de denúncia, de mudança e de perenidade. Aliás, incluo também nesse rol, o poder da fofoca. Há uns anos, li um artigo que dizia que a fofoca, em tempos idos, ajudou as mulheres a evitarem ciladas amorosas, pois elas falavam entre si sobre os homens, suas mentiras e canalhices e isso fazia com que elas ampliassem o conhecimento a respeito das artimanhas e conseguissem se defender.

Não à toa, carregamos o estigma de falar demais. Creio que essa é a nossa salvação. Falar, falar, falar, cada vez mais umas com as outras. É possível que essa seja nossa arma letal e maior poder de resistência. Falemos mais sobre nós do que sobre nossos corpos, roupas e bolsas. Falemos sobre as mulheres que batalham, sonham, ousam e denunciam. 

Cada uma luta com o arsenal que tem. Maria doze homens é prova disso.  Pesquisem sua história, descubram sua engenhosidade, contem para outras de nós. É de palavra em palavra que tecemos nossa resistência.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Zoraya Cesar disse…
"Não à toa, carregamos o estigma de falar demais. Creio que essa é a nossa salvação. Falar, falar, falar, cada vez mais umas com as outras. " Gostei muito dessa sua interpretação. E do poder sanador e protetivo da fofoca. Uma outra maneira de entender as coisas. E gostei muito também de conhecer essas mulheres. O apagamento histórico é uma verdade ainda escondida debaixo da cama.
Anônimo disse…
Ameiiii seu comentário.
Anônimo disse…
Soraya
Ana Raja disse…
Que crônica linda! Obrigada por trazer essas mulheres esquecidas e tão importantes para nós.
Anônimo disse…
Bom demais poder contar com a sua leitura atenta e carinhosa. Soraya
Nadia Coldebella disse…
Fico feliz com seu texto. Também acho que é na palavra e na arte que reside o poder. A tristeza é saber que muitas vozes perecerão, antes que as dores sejam ouvidas. Uma pena que esse mundo ainda precisa de mártires para sedimentar as mudanças. Mesmo assim, também precisamos de sororidade enquanto gritamos. Grande abraço!
Anônimo disse…
Quantas vozes perecerão…Tenho pensado nisso. Nessa imporêncoa.
Anônimo disse…
Impotência
Jander Minesso disse…
Não vou fingir que conheço a dor dessa luta diária que vocês enfrentam há séculos, mas imagino quão difícil é. Por outro lado, consigo me conectar muito com a ideia de tempo que você expõe no começo, e ela me pegou de jeito desde a primeira frase.
Anônimo disse…
Obrigada, Jander ,pela leitura e retorno. Bjo
Andy Candy disse…
Crônica maravilhosa!
Albir disse…
Sim, gritos de desespero são muitas vezes o único registro de situações desesperadoras. Falem, mulheres, por palavras, por gestos, por cochichos, por apitos, gritos, tambores ou sinais de fumaça. Só não se calem!
Anônimo disse…
Obrigada! Soraya
Anônimo disse…
Só não se calem! Obgda, Albir! Soraya

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