O BUÇO DO VITORINO >> MÁRIO BAGGIO

 


Vitorino descobriu hoje que tinha buço quando se olhou firmemente no espelho do banheiro e contou até dez para se acalmar e deixar passar a vontade de matar seu pai. Não era uma penugem qualquer, dessas a que ninguém dá muito valor: era um buço considerável para seus quinze anos, roliço, volumoso, espesso, que se estendia por todo o lábio superior e lhe dava um ar maduro, de homem quase feito, de homem que podia brigar pelo que queria. Podia até matar, se fosse o caso.

 Aproximou o rosto do espelho para examinar melhor e admirou o buço recém-descoberto. Chamou-o de bigode. Sorriu ao pensar que era agora um homem que tinha bigode. Passou a ponta dos dedos sobre ele, torceu as pontas para cima, depois para baixo. Era um bigode e tanto. Seu velho pai, coitado, com a idade que tinha, não podia ostentar um bigode assim.

 O pai de Vitorino se casou com Rosemary pouco tempo depois de ficar viúvo. Rosemary — muito mais jovem do que o marido — tornou-se a segunda mamãe de Vitorino, mas ela não gostava de ser chamada assim. Preferia Rosemary, simplesmente. Ou, se Vitorino quisesse, Rose. “Ou Mary, mas nunca de mamãe, viu, rapazinho?”

 Vitorino e Rose se davam muito bem. Conversavam, almoçavam juntos, ouviam música, trocavam confidências. Ela o ajudava nas lições do colégio. Nos dias em que o marido viajava a negócios, Rose aproveitava e dava aulas de dança para Vitorino. Afinal, ele já estava ficando um homenzinho e precisava aprender a dançar para arranjar uma namorada. Ela punha um disco pra tocar e afastava os móveis da sala. Estendia os braços para Vitorino e o abraçava, e pedia que ele a pegasse pela cintura. Os dois giravam lentamente ao ritmo de um samba-canção. Quando a música terminava, ela sorria e dava um beijo na bochecha do garoto. Dizia que outro dia lhe ensinaria novos passos.

 Numa dessas aulas, quando o disco parou de tocar, Rose beijou Vitorino no pescoço, pegou as mãos do rapaz e as colocou sobre seu peito e fez um agrado em seus cabelos. Disse que estava cansada e foi para o quarto. Vitorino continuou dançando sozinho na sala, sem par e sem música, os olhos fechados, abraçando o próprio corpo magro.

 Uma noite, Rose foi até o quarto de Vitorino para dizer que no dia seguinte ele teria aula de bolero, mas a lição de dança foi feita ali mesmo na cama do mocinho. E ultimamente Vitorino tem notado que a barriga dela está crescendo. Numa das aulas de samba, Rose disse no ouvido dele que os dois vão ser papai e mamãe, mas que ele guardasse segredo e não contasse a ninguém. Vitorino obedeceu.

 Hoje, quando o pai de Vitorino abraçou Rose e a colocou no colo, acariciando sua barriga, o rapaz reagiu com ódio e gritou: “Tire as mãos da minha mulher!” O pai riu: “Olha o atrevimento do moleque, pensa que já é homem. Cale a boca e vá pro seu quarto. Insolente!” Vitorino saiu da sala pisando duro e se trancou no banheiro. Cheio de raiva e ciúme, olhou-se firmemente no espelho e começou a contar até dez para se acalmar e deixar passar a vontade de matar seu pai. Foi quando descobriu que tinha buço. Não uma penugem qualquer, mas um buço considerável, roliço e volumoso. “Um bigode. Um bigode de homem”, ele pensou. De homem quase feito, de homem que podia brigar pelo que queria. Podia até matar, se fosse o caso.

Imagem: Pixabay

Comentários

Soraya Jordão disse…
Adorei o ritmo, a cadência e a história. E mais ainda, esse “deixar para o leitor” o desfecho. Ótima crônica.
André Ferrer disse…
O estilo é diferente, mas o "ciclo narrativo" - chamaremos assim -, lembrou-me Dalton Trevisan. Dalton teria colocado um fim e uma navalha na história com toda a certeza. E não seria para cortar o buço apenas. Rsrsrs! Texto bom de ler amigo! Excelente.
Jander Minesso disse…
Fudido. Não achei outra palavra pra expressar o quanto gostei desse texto.
Zoraya Cesar disse…
Definitivamente, Baggio, vc tm de entrar na confraria mortal. Aliás mortalmente bem escrito e engendrado esse conto, hein? Show demais. Amei a junção do início e do fim, abertura e fechamento ligados de forma magistral.
Albir disse…
Baggio, você escreve muito bem, não se deixe arrastar para a confraria como propõe Lady Killer!
Nadia Coldebella disse…
Bah! Gostei muito! É de se esperar uma morte. Mas vamos falar sério: que situação, hein?
Nadia Coldebella disse…
Ah, esqueci de dizer, não estamos te convidando pra Fraternidade da Pá. Já estamos te intimando. E acho bom vc aceitar logo, porque a Zô já ligou o carro...

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