MEMÓRIAS DE UMA ASSOMBRAÇÃO PATÉTICA - parte 2 >>> Nádia Coldebella
Anteriormente...
Decidi que não poderia viver morto assim. Se não havia feito nada da minha vida, eu precisava fazer alguma coisa da minha morte.
Ah, Nicoletti...
(Leia a primeira parte aqui)
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Decidi me vingar. Eu a queria sofrendo, humilhada, vencida, ardendo, implorando, desvairada e embriagada de terror. Mas, se nesse mundo a gente nasce sem nada, na morte é pior, porque não se leva nada, só as intenções.
Nenhuma habilidade que aprendi no mundo dos vivos funcionava no mundo dos mortos e eu precisei me dedicar um longo tempo na aprendizagem da ciência fantasmagórica. Não existia, pra mim, manuais, nem professor. Foi um processo de tentativa e erro e, enquanto eu desesperadamente me esforçava, ela sorria para o mundo, livre, leve, solta e rica.
Agora os homens se amontoavam em volta dela e eu era obrigado a presenciar, aos pés da cama, outros corpos se deliciando com Nicolletti. Nenhuma justiça se fez para o meu cadáver que agora se decompunha e eu me dei conta de que ela era uma viúva negra, procurando outro marido rico para transformar em fantasma.
Ela queria me substituir até na morte. Ser um fantasma corno é uma ideia terrível de ser suportada por qualquer alma sofredora. O ódio preencheu todo o espaço entre as minhas etéreas moléculas e foi esse sentimento que me possibilitou dominar a arte da assombração e por em prática minha doce vingança.
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A primeira vez foi no nosso espaço mais emblemático, o quarto. Enquanto ela se afundava naquele prazer pecaminoso, sob um corpo musculoso e suado, contorcendo-se toda e gemendo feito um animal machucado, eu me materializei, flutuando sobre a cama, bem diante dos seus olhos.
Confesso que eu estava muito assustador, até eu tive medo de mim, esbranquiçado e arroxeado, numa vibe Exorcista. Sinceramente, esperava aterrorizá-la até o ponto de um ataque cardíaco, mas ela era Nicolleti, aquela que sentira prazer em me humilhar. Ao me ver, seu rosto se encheu de ternura e ela abriu o mais lindo dos sorrisos, para então atingir o clímax.
Eu evaporei, derrotado.
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Na segunda vez, invadi seus sonhos do mesmo jeito que ela tantas vezes invadira os meus. Como um íncubos, assumi minha forma mais elegante, ofereci-lhe uma taça de vinho, mordisquei sua orelha, disse que ela era só minha e me preparei para subjugá-la. Eu queria que ela provasse do seu próprio veneno e se enchesse de remorso.
Ela porém, não resistiu. Se entregou a lascívia de uma forma como eu nunca tinha visto nem nos meus sonhos mais audaciosos. Depois de uma noite tórrida com essa alma penada que voz fala, ela me conduziu para uma segunda morte, despejando o vinho envenenado que eu lhe dera para beber em minha boca. Ela acordou sorridente, satisfeita e saciada e eu voltei ao mundo dos mortos outra vez, prostrado e humilhado.
Ah, Nicoletti...
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Na terceira vez, sussurrei o seu nome
- Nicoletti, Nicoleeeetti!!! - ela apenas sorria.
Cheguei bem próximo aos seus ouvidos e adicionei um hálito gelado. Desci meus lábios frios sobre seu pescoço e afundei minhas mãos sobre seus cabelos. Desci minhas mãos gélidas pela suas costas e ela envergou-se cheia de calafrios. E enquanto seu nome estalava em minha boca igual chicote nas costas de um escravo, ela arrepiava-se e contorcia-se, deliciada.
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Confesso, caro leitor, que tentei e tentei muitas vezes conduzí-la, senão à morte, pelo menos à loucura. Arremessei objetos para ferí-la e golpeei seu corpo inúmeras vezes, deixando marcas roxas, mas ela apenas sorria e se contorcia de prazer. Andei pelas sombras do quarto fazendo barulhos, estalos e gemidos, mas ao me ouvir, ela se desnudava e deitava na cama, me esperando. Criei cheiros putrefatos, que ela inspirava profundamente, como se estivesse inalando o mais rico dos perfumes.
Cada tentativa minha se dissolvia na devassidão assustadora desta mulher. Em tudo ela se deliciava e se satisfazia, me deixando cheio de desejo e certo de que, mesmo morto, eu continuava patético.
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Então ela casou-se novamente.
Outro homem ensimesmado, sério, taciturno e rico, assim como eu era. Outro homem que ela assombrara nos sonhos, que se contorcera ao ouvir "Prazer, Nicoletti", outro homem a quem Nicoletti nascera para humilhar. Outro homem que pateticamente desejava ser dono do seu amor. Outro homem.
Não me contive.
Enquanto ele a possuía, eu a imobilizei na cama. Prendi seus pulsos, seus tornozelos e apertei seu pescoço. Ela não resistiu, não lutou. Pela primeira vez ela ardia, queimava de desejo. Sua concupiscência nunca fora tanta. Meu ódio só aumentou e eu arremessei todos os objetos que pude, produzi todo o barulho que consegui, movimentei a cama como se fosse um verdadeiro terremoto.
Nicoletti gemeu, completamente satisfeita, quando seu novo marido, não suportando o medo e o vinho envenenado, sucumbiu à morte.
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Nicolleti, aquela que sentia prazer em me humilhar na vida e se comprazia na minha morte continua viva, linda, livre, leve, solta e rica. Seu nome ainda estala na minha boca, os homens ainda se amontoam em seu entorno e eu ainda sou patético, até mesmo na morte.
Porém, não estou sozinho.
Hoje somos duas almas penadas, unidas por um mesmo ideal, o de assombrar Nicoletti.
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