LAS CUARTETAS >> JANDER MINESSO

 

A pizzaria Las Cuartetas fica na Avenida Corrientes, bem perto do Obelisco. E, segundo o Juan, um amigo local, ali se faz a pizza mais surpreendente da Argentina. Inclusive, ele me levou lá para degustar a iguaria.

A primeira coisa que notei ao entrar foi o barulho: um mar revolto de sotaque portenho, que arrebentava contra espelhos e paredes não muito brancas. A princípio, fiquei desnorteado naquele falatório, mas um perfume tão gratinado quanto defumado roçou minhas narinas e logo me convenceu de que o Juan tinha alguma razão.

Ele e o garçom trocaram duas palavras na velocidade da luz e logo estávamos numa simpática mesinha de laca vermelha e pés de metal. Sem dúvida, essa mesa já estava lá antes mesmo da suposta fundação da casa em 1937.

Ainda digerindo todas aquelas informações sensoriais, deixei o pedido a cargo do meu amigo. Ele sugeriu uma fugazzeta de entrada, seguida de uma muçarela clássica acompanhada por uma tal fainá. Y para beber? Água, por favor. Con gás. Esse negócio de encher a cara toda vez que sai de viagem é coisa de jovem e eu já tinha tomado a taça de vinho diária que me permito por lei quando estou de férias.

Enquanto esperávamos, meu guia gastronômico contou, para minha descrença, que as paredes tinham sido pintadas há pouco. Ou, pelo menos, há pouco para os padrões de uma casa quase centenária. Durante a pandemia, a Las Cuartetas quase fechou as portas de vez. Mas, movidos por um tipo de senso do dever, os donos e funcionários do local se comprometeram a manter o forno sempre aceso. Reza a lenda que o forno funciona sem parar desde a fundação da pizzaria. Isso porque, caso a temperatura abaixe além de um certo limite, toda a estrutura pode rachar. E se isso acontecer, adiós nonino.

Por isso, durante a pandemia, os funcionários decidiram se revezar. Todos os dias, alguém ia até a pizzaria e alimentava o forno com lenha nova suficiente para mantê-lo na temperatura ideal. Mais tarde, conforme as coisas melhoraram e mais gente pôde aparecer por lá, eles aproveitaram para pintar as paredes e dar uma geral nos três compridos salões do térreo e também no piso superior.

Aliás, a lotação do lugar foi outra curiosidade que me deu um misto de inveja e paz. Era uma simples terça-feira de agosto, mas os salões estavam entupidos de gente: amigos saindo de uma partida de futsal; casais idosos jantando em milagroso silêncio; famílias que se acotovelavam em mesas duplas, porque juntar três mesas não podia; e turistas estrangeiros que enxergam melhor a mágica da vida quando estão longe de casa. Desde esse dia tenho pesquisado lugares clássicos da minha cidade para conhecer. Segundo a matéria de um jornal, a maioria já foi de base ou está prestes a fazê-lo.

Mas, de volta à Las Cuartetas: logo a pizza chegou. Imensa, alta, com uma massa aerada da altura de dois dedos e queijo suficiente para fazer o Francis Mallmann desmaiar de horror. Não bastasse aquele leviatã, juntas vieram a fugazzeta e dois pedaços de fainá: uma tortinha fina, feita com farinha de grão de bico, quase sem gosto, mas que me convencia de que eu era uma pessoa preocupada com a minha saúde. Claro que eu estava comendo uma tonelada de gordura e farinha de trigo refinada. Mas minha refeição também tinha grão de bico. E qualquer um sabe que grão de bico é saudável, portanto a fainá anulava quaisquer malefícios vindos da pizza ou da fugazzeta.

Devo admitir que, enquanto comia, um pensamento quase herege rondava minha mente: “essa belezinha aqui lembra um pouco o Pizza Hut.” Mas juro que não era uma ofensa: era mais uma comparação inevitável, dado o tamanho daquela criatura que vertia queijo e tomate por todos os lados. Segundo o Juan, os imigrantes italianos que chegavam em Buenos Aires se espantavam com aquele lugar tão abundante, ainda mais comparado à carestia que castigava sua terra natal no entreguerras. Portanto, aquela pizza hiperbólica era a maneira que eles tinham encontrado para celebrar a felicidade do recomeço, tradição mantida até hoje.

Eu sei que tradição demais é ruim, mas um pouquinho é gostoso. E aquela pizzaria sabia honrar a tradição sem ser pedante ou reacionária. Parecia que cada um dentro daquele lugar executava a sua parte numa homenagem aos argentinos de todos os tempos: idos, atuais ou vindouros. Por isso, se alguém aportar por Buenos Aires, eu sugiro a Las Cuartetas. Talvez você não saia de lá convencido de que provou a melhor pizza da sua vida, mas a experiência será única. Obrigado, Juan.

Imagem: acervo pessoal
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Comentários

sergio geia disse…
Show! Obrigado pela dica.
Nadia Coldebella disse…
A crônica está uma delícia, mas eu tenho uma reclamação: Vc e o Sérgio fazendo dobradinha no findi, é certeza que a dieta vai pro ralo. E não adianta vir dizer que é quinzenalmente, nem é tanto assim, etc, etc, porque essa lavagem cerebral alimentícia que vcs fazem na gente dura meio mês.
De qualquer forma, vou colocar Las Cuartetas na minha lista. Vou dar uma conferida qdo eu pisar na terrinha de Los Hermanos. Só pra fazer um controle de calorias.
Gde abç
Soraya Jordão disse…
Jander, ontem, perdi um amigo de 37 anos que tinha acabado de realizar seu sonho:conhecer Buenos Aires. Li com lágrimas e sorrisos. Ele morreu, mas realizou seu sonho... Talvez até tenha ido na Pizzaria, quem sabe?
Ana Raja disse…
Que delicia de crônica. Consegui estar ali com você. Demais, Jander!
Zoraya Cesar disse…
Não sei o que pode ser mais gostoso: sua crônica ou a tal pizza. Tá anotado. Parada obrigatória em Buenos Aires!
André Ferrer disse…
Algo que saiba "honrar a tradição sem ser pedante ou reacionária" é de uma raridade superlativa. Texto magnífico.
Albir disse…
Anotado, Jander. Vou pedir fugazzeta com fainá, seja lá o que isso for!

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