QUEM VIVER SOFRERÁ >> André Ferrer

Outro dia, revelei o desejo de comprar um Escort XR3 conversível. Entre os presentes, que acharam graça naquilo (não, eles riram), estava o meu pai. Seu conselho foi que eu comprasse, também, uma caixa de ferramentas e um bom sortimento de peças (não, ele disse, com todas as letras, que eu ficaria na estrada mais cedo ou mais tarde). Desafiado (sim, eles gargalharam), tomei o exemplo do Fusca e levantei a ideia de que um retorno do XR3 não constituía nenhum disparate. Sim, eu compraria o carro mais cobiçado pelos rapazes da minha geração.

1984 foi o ano das Olimpíadas de Los Angeles e do movimento Diretas Já. Michael Jackson, pela primeira vez, era chamado de Rei do Pop. Airton Senna, garoto propaganda do novo esportivo da Ford (sim, o Escort XR3), estreava nos Grandes Prêmios da Fórmula 1. Em todo o país, as rádios tocavam os enervantes “hits” do grupo Menudo. Eu tinha 11 anos.

Curiosamente, a nostalgia pode ser a grande arma do mercado. Crises econômicas já foram vencidas graças a um tipo de “marketing” preciso e refinado. São estratégias focadas nos indivíduos com maior poder de compra e maior... memória afetiva. Em 2015, por exemplo, nunca se vendeu tantos itens da franquia Star Wars para... cinquentões.

No meu caso, enquanto essa marca não chega, deparo-me cada vez mais com produtos milimetricamente pensados e deliberadamente envoltos naquela aura dos 1980. Referências à época da minha infância pipocam a todo instante. Onipresentes, elas incomodam. Para mim, suas piscadelas têm o mesmo efeito opressivo do “tic-tac” do relógio. Trata-se de um bombardeio e, raramente (como no surto que relatei no primeiro parágrafo), o estímulo é interno e espontâneo. Deste modo, a irritação supera o desejo. Caçoadas ficam minúsculas perto da grande e opressora melancolia.

“Stranger Things”, a famigerada série da Netflix, causou-me isso. Para quem não conhece, trata-se de uma série de terror cheia de referências “oitentistas”. Seus produtores e roteiristas calcularam tais referências de modo a criar um produto atraente para os pais, que viveram os anos de 1980 (e pagam a mensalidade da Netflix), e os filhos, criadores de algo tão geracional quanto o nosso rolê na lanchonete: a maratona de séries.

A nostalgia não é boa coisa para os mais velhos. Pode ser um barato para os mais novos que não viveram e só têm... saudades de coisas lidas e ouvidas. Quanto a nós, o melhor é lembrar com moderação.

 

Esta crônica faz parte do projeto Crônica De Um Ontem e foi publicada originalmente em 10 de outubro de 2016

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Sobrevivemos aos anos oitenta. Eu encho minhas filhas de referências e elas amam. Eu não sinto essa nostalgia, sinto um aconchego. Foi uma época única, um fechamento do passado e um prenúncio do porvir. Moldou nossa geração, que perturbou completamente a ordem das coisas.. Será que daqui a 100 anos, alguém olhará pra ela?
Zoraya Cesar disse…
Os anos 80 são só para os privilegiados que os viveram ou que têm quem os apresente - a melhor década! Sem nostalgias, só vivendo de memórias vivas, que mantêm nossa sanidade no meio desse caos de mediocridade q vivemos.
Albir disse…
Também cobicei o XR3 nos anos 80, já tinha até esquecido, mas bem que podia voltar.

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