CADÊ O GATO? >> Albir José Inácio da Silva
Melhor que fosse acusação ou
ameaça, dessas gritadas, das quais a gente se defende também com gritos,
contra-ataca e deixa desmoralizado o acusador. Mas não era. Nem mesmo uma
insinuação. Eram lamentos, choramingos.
- Já faz três dias que ele não
aparece.
- Alguém matou. Covardia.
Brincava com todo mundo.
- Deve ter sido veneno, tem gente
que é ruim.
Ao contrário das acusações e
ameaças, das carapuças não se foge nem se responde. Mesmo quando passam ao
longe, apenas entreouvidas, parecem atraídas pelas cabeças onde cabem. Aquele
“tem gente que é ruim” me disparou uma taquicardia, e não consegui evitar um
gemido.
Mas quem sumiu? Não era um gato
preto, misterioso e mal-assombrado, desses que lembram bruxas e demônios. Era simpático e malhado de cinza e amarelo.
Esfregava a cabeça e o dorso nas pernas das pessoas querendo carinho. Brincava
com os outros animais, até com os pintinhos, sem ferir ou ameaçar ninguém. Os
que não gostavam de gatos diziam que ele era imprestável, porque já o tinham
visto brincando até com camundongos. Mas quase todos gostavam dele. Era um bom
gato, e isso aumentava o meu remorso.
Como não tinha dono, nunca lhe
deram um nome. Era simplesmente gato. Um gato comunitário. Todos lhe davam
comida e ele dormia onde queria, sem ser incomodado. Fazia parte da comunidade.
O caminhão da loja de material de
construção veio sem o ajudante naquele dia. O motorista precisava fazer
manobras complicadas para entrar no terreno e descarregar a terra de emboço. Só
eu estava por ali, soltando pipa sobre a montanha de areia lavada que ele
trouxera no dia anterior.
- Oh moleque, vê se dá pra ir! –
gritou Seu Manuel dando ré na jamanta, antes de inclinar a carroceria.
- Vaai! – gritei, preocupado com
a pipa, mas dando uma olhada no terreno atrás do caminhão. Por um momento me
pareceu que as folhas da aboboreira se mexeram, mas devia ser o vento, que
aliás quase me arrancava a pipa da mão.
Em segundos uma montanha de
quatro metros de terra preta foi basculada e Seu Manuel acelerou sem olhar pra
trás.
Dois dias depois, começaram a
perguntar pelo gato. Ele nunca tinha sumido assim. No terceiro dia foi aquela
história de “tem gente que é ruim”, e eu já não dormia mais, pensando no gato.
Além da tristeza, eu ainda vivia um dilema.
Sentia-me na obrigação de movimentar toda a terra pro lado, para encontrar o
gato e dar-lhe um enterro decente. Mas eu levaria dias para mexer aquela
montanha, as pessoas fariam perguntas e eu teria de confessar meu terrível segredo.
No quarto dia não acordei porque
não tinha dormido, mas levantei e fui para o quintal olhar o monte de terra, a
ver se resolvia o que fazer da vida, agora arruinada pela tragédia do gato. Por
um segundo me pareceu ter visto alguma coisa se mexer no alto da terra preta. O
sol que nascia atrapalhava meus olhos, mas de repente eu vi. Não era um gato.
Eram dois.
Uma gatinha branca, dengosa,
esticava o pescoço, enquanto o nosso gato, desaparecido, lhe lambia o pelo. Não
sei aonde ele tinha ido buscar aquela coisinha imaculada, mas, com certeza, não
foi embaixo da terra preta. E era longe, porque demorou quatro dias a viagem.
Obs: Este texto integra o Projeto Crônica de um Ontem e foi publicado originalmente em 15/06/2015.
Comentários
Os gatinhos adoram um passeio mais longo.