ELES - OS QUE AQUI SEMPRE ESTARÃO >> Zoraya Cesar



Egídio

A manhã de domingo estava fresca, quase fria, um vento elísio safado fazendo pouco do sol fraco. As ruas ainda estavam vazias, um domingo preguiçoso. Ideal para passear. 

Egídio pegou a bicicleta, a chave de fenda e a filha, não necessariamente nessa ordem, e saíram. 

- Vamos filha, eu tô aqui, vamos juntos, papai não vai te deixar cair. – Desaparafusou as rodinhas de segurança sob o olhar atento e grande da menina. 

Durante algumas horas que lhe custaram dores nas costas por dois dias, Egídio segurou, empurrou, acertou a bicicleta em que a menina, ainda desajeitada e medrosa, aprendia a andar. E, na hora do almoço, voltaram para casa, felizes, cansados, sorridentes, vitoriosos. Sua menina sabia andar de bicicleta! 

Conta sempre as mesmas piadas, mas a filha faz questão de rir como se nunca as tivesse escutado. E, apesar de ter um viés de egoísmo – o mundo domiciliar tem de girar em torno dele – Egídio não julga. Apenas estende os braços, em acolhimento. Foi ele quem abraçou, consolou e apoiou a filha quando ela mais precisava. 

Daí o aprendizado mafioso de cuidar da família em primeiro lugar. Mas tem outro. Com todos os seus pequenos egocentrismos, ainda assim Egídio perdoa facilmente. Não leva amarguras para a vida. O que ela sente por ele? Tanto amor que até dói.
 

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Arnaldo 

Às vezes o pai é o avô. E tá tudo bem! Até porque a alegria dele em estar com os netos era tão grande, tão intensa, tão imensurável, que cobria qualquer buraco de ausência que o pai desatento e agressivo deixava na vida das crianças. 

Férias. A expectativa de ficar em casa, na companhia desagradável do pai, afligia o coração dos dois irmãos até quase o pânico. Mas não tinha erro. Seu Arnaldo aparecia logo ao raiar do primeiro dia, para não dar espaço a qualquer empecilho. 

Botava os dois debaixo do braço e lá iam, em conversas sem sentido, risadas bobas, de puro regozijo. Chegar na casa do avô era como chegar no Paraíso. E não porque escapavam do mau humor do pai, mas também porque Seu Arnaldo enchia a piscina Tone – a alegria da criançada. E preparava as comidas preferidas dos netos, todos na cozinha, compartilhando cada momento, jogando, lendo, brincando. Somente quando o sol se punha é que os levava de volta. Mas no dia seguinte estava lá ele, tão certo quanto o amanhecer. 

Sua presença e sua referência como pai e avô foram tão profundas, que sua filha, depois que ele morreu, nunca mais foi a mesma. Quebrou algo por dentro. Mas ele permanece, vivo, alegre, forte, na memória e na vida dos netos ainda hoje, que tentam honrá-lo tentando ser tão bons pais e mães quanto ele foi. 

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Antonio Celso

Todo Natal era a mesma coisa. Depois que todos dormiam, pai e filha iam futucar os presentes na árvore, para ver o que cada um ia ganhar. A cumplicidade entre eles era tão grande, que não foi para a mãe que a menina contou quando ficou ‘mocinha’. Foi para o pai. 

Um gentleman inteligentíssimo, que falava línguas sem nunca ter feito cursos. Que dava o que tinha e o que não tinha para os amigos, mas custava a pagar as contas da casa. Que entendia de jazz e blues. Vaidoso, amável - e fraco emocionalmente, como todo canceriano mal trabalhado...  

Antonio Celso falava da filha fonoaudióloga com um orgulho que não cabia no peito. E tinha medo de insetos. E chegou a quebrar uma vassoura por causa de um camundongo. 1x0 pro camundongo, diga-se de passagem. 

Quando seu cachorro morreu atropelado, Antonio Celso desabou de tal maneira, que a filha teve pena. Pena do homem grande, engraçado, gentil e bondoso, que, confrontado com as cruezas da vida, ameaçava se atirar das barcas de Niterói. 

Pena de uma vida que se foi cedo demais, violentamente demais, sem que ele tivesse chance de continuar sendo a pessoa maravilhosa que era. 

De todas as coisas que ele dizia, uma, em especial, ficou guardada na memória da menina, e a ajudou algumas vezes na vida:

- Os canalhas também envelhecem. 

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Agenor Avô e Agenor Pai (o filho, felizmente, segundo o próprio, escapou da sina agenorística)

Agenor Avô - O menino era traquinas; não dos piores, mas era. E daquela vez ele ia apanhar, ora se ia!
A mãe correu, felizmente sem o chinelo-torpedo de alta precisão, enquanto ele zunia para o quintal do avô. Quando ela viu que o menino conseguira ultrapassar a fronteira, desistiu. Ninguém encostava o dedo nos netos do Seu Agenor. E esse era um grande orgulho que ele sentia no coração: ser reconhecido como porto seguro para os netos, em qualquer circunstância, mesmo sob a ameaça de uma mãe furiosa. 

Agenor Pai – o menino era um profissional no quesito ‘perder-se dos pais em lugares grandes’. Mas Seu Agenor Pai era perito em encontrá-lo. Na seção de crianças achadas e perdidas de um supermercado, agarrado numa pilastra de hospital... foram muitos os eventos. E era sempre o Agenor que o achava. Disso, restou a impressão indelével de que o pai sempre o encontraria, não importava quão perdido estivesse. Pois Agenor tinha uma dedicação feroz aos filhos, que exigiu muita renúncia à sua individualidade. Claro que ele sempre dava um jeito de exibir-se ou lamentar-se aos quatro ventos. Mas, ainda assim, nunca mudou de atitude. Tanto que, para o filho do Agenor, ser pai é o que mais o realiza, mas também o que mais o atemoriza - tentar alcançar o exemplo do pai e não ser bem-sucedido. 

A velha Brasília RY 9902 ia apinhada – dois adultos, três crianças, as malas, os brinquedos e o barulho. Que só parava na hora de cada um escolher a música a tocar no velho toca fitas TDK  - na vez do pai era sempre Richard Clayderman. 

Outro dia, viajando de carro com suas crianças, na sua vez de escolher a música (sim, ele também faz isso), o filho de Seu Agenor não pediu Richard Clayderman, mas a versão original de uma música que ele tocava: "Et si tu n'existais pas", do Joe Dassin. Quem ler a letra entenderá. 


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José Maria

A família era grande! Pai, mãe, 6 filhos (3 meninos e 3 meninas) e uma cunhada 'agregada'. Era grande e, digamos, bem longe de ser rica. Mas tinham casa com quintal e um fusquinha, que levava as crianças naquele chiqueirinho atrás, que fazia as vezes de mala. 

A hora do lanchinho era mais que especial - sanduíche de mortadela e refresco de laranja bem diluído em água ou Q-suco (todos sobreviveram, diga-se). Até hoje os irmãos gostam de marcar os encontros familiares na hora do lanche. 

Mesmo quando conseguiam a proeza de passar um final de semana em Friburgo, era um quarto só pra todo mundo, a garotada dormindo no chão, uma algazarra feliz. Almoço de domingo, nessas viagens, era sempre no restaurante hotel Mariquinha. E desde então, é tradição familiar almoçar na Mariquinha quando qualquer um deles vai a Friburgo. 

Um sujeito alegre, trabalhador e responsável, pessoa boa demais, tão boa que não via maldade nos outros e foi enganado algumas vezes, para prejuízo da família. Seu José Maria fez mecânica no CEFET. Anos mais tarde, o caçula dos irmãos homens também passou para lá, em edificações. Não passou por acaso. Quis ir para a mesma escola que o pai. O pai, que há 40 anos morreu daquela doença que ninguém gosta de falar o nome quando esse filho ainda era muito jovem. 

Algumas lembranças se desvaneceram, mas não o barulho que fez a tampa do caixão ao se fechar. Nem os exemplos de honestidade, trabalho e vínculo à família. 

De vez em quando, o Zé Maria aparece em sonhos para o caçula, que se espanta “uai, mas você não tinha morrido?”, pois o pai está tão vivo, tão real, são e salvo. Nesses dias, acorda especialmente feliz, e sempre aliviado, pois sabe que, esteja onde estiver, o pai faz questão de lhe aquecer o coração e garantir que está bem demais.  

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João 

Na dupla policial bom/policial mau, a mãe era a boazinha e Seu João era o portador do chinelo. Um portador chinfrim, pois só fazia pose e ameaçava, nunca usou.  

O que ele gostava mesmo era de brincar com a filha do meio, que se escondia no armário quando ele estava para chegar do trabalho, para que o pai, fingindo preocupação, saísse a procurá-la. Uma lembrança que não se apaga. 

Naquelas tardes preguiçosinhas de final se semana, aquela vontade de comprar uma coisinha gostosa para o lanche. As pessoas correndo para adentrar o sábado, e eles, calmamente, devagar, divagando, escolhendo, os dois, o que comprar. Ela se sentia tão importante! E ainda tinha o caminhar de volta, as mãos carregando sacolas, o antegozo do lanche em família. 

E o parque de diversões? Seu João às vezes trabalhava no final de semana e levava a filha. O escritório da empresa onde ele trabalhava, vazio, era todo dela. Tinha a bolinha com ímã na base, tinha a cadeira que – maravilha das maravilhas! – girava no próprio eixo e ainda por cima reclinava. E o maior encanto: a máquina de escrever. 

E, de tanto acompanhar o pai e ver como ele trabalhava – sempre dentro da lei, nunca tirando proveito da ignorância alheia, nem se apossando do que não lhe pertencia por direito –, assumiu esses valores. E mais: aprendeu com ele a só gastar o que podia e a jamais desejar o que não lhe cabia. 

Sua única chateação é ter crescido demais para se esconder no armário quando o pai está para chegar...

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José 

Silveira, a seu dispor. 

Pois é assim, na simplicidade, na humildade, que se apresenta o professor de Filosofia, fluente em 8 idiomas (e, de quebra, arranha outros dois). Conversa com todos, pertence ao mundo. Vendo-o interagir com doutores e pedreiros, em universidades ou padarias, quem não o conhece jamais adivinharia que Seu João, Professor Silveira, é referência em sua área, citado em concursos e com vários livros publicados, de filosofia e de ficção. 

E que gostava de levar a criançada para Itaipuaçu. No caminho, havia uma rua elevada que descia subitamente. Era ali que ele sempre acelerava, para o carro saltar e a molecada ir ao delírio.

Uma pessoa correta e íntegra, que ensinou os filhos a nunca enganar os outros e a respeitar o próximo. E o mais importante: prova, todos os dias, que a melhor maneira de um pai ensinar é dando o exemplo, e que sempre se deve demonstrar amor - “um amor de explodir o coração” – pelos filhos. 

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Valentim 

Fácil, fácil, o bicho não era. Rude, implicante, agressivo, impertinente. Às vezes parecia estar possuído por algum obsessor. Mas não é que cães, gatos, crianças gostavam dele? Eu sei que eu gostava. 

Venceu na vida apesar de semianalfabeto, vindo do interior da Bahia pra dormir nos bancos da Cinelândia, passando necessidade. Trabalhava feito o cão chupando manga, sem domingo, sem feriado, sem hora pra sair, sem hora pra chegar. E apesar de seu comportamento bipolar (ou possuído, vá saber), da metade da vida para o final, se redimiu completamente.

Sempre passou valores de honestidade, trabalho duro, de andar com a postura ereta, olhando pra frente, não ficar se escorando nas paredes. Guardar dinheiro. Estudar. Porque fez questão de pagar o melhor estudo pras filhas. Ensinou a não depender do dinheiro alheio. 

Meu paizinho. Quando eu era pequena, você era meu modelo de força e poder, meu norte, eu não queria ser como mais ninguém, queria ser como você. Depois, a segunda metade da minha vida com você não foi fácil. Foi bem dura, a dizer da verdade. A terceira parte foi a melhor. Tão bom resgatar o herói da infância, em compreender que todos temos defeitos. Tão bom ver você orgulhoso, já no final, em saber que nunca faltou comida em casa, que você proveu tudo e não tinha dívidas nem empréstimos, nunca pediu nada, era independente. 

Nos ensinou muito sobre a vida. Porque Valentim gostava de viver. De comer bem, de correr na praia (até os 80 anos! Depois a idade só o deixou andar os 5 quilômetros, que ele fazia religiosamente, todo dia), de fazer exercício. Chegar em casa da caminhada pós-almoço e sentar pra ver a novelinha, as notícias e dormir cedo. E ler. E jogar xadrez. Nunca reclamava de nada.

Meu paizinho. Agradeço tanto eu ter podido dizer o quanto te amava e admirava. Fiz a tua vontade e joguei suas cinzas no mar e na praia. 

Não tem um dia, one single fucking day, que eu não me lembre de você, que eu não sinta você estar vivo, em que eu não agradeça por tudo. Não tem uma única porra de vez em que eu não fale sobre você e não chore. 

Tua sobrinha Claudia, que é sensitiva e macumbeira, sonhou que você estava tão bem, mas tão bem, tão cheio de luz, e que estava feliz! 

Eu acredito. Porque o amor redime tudo, e eu te amo demais. 

Um dia a gente se vê. (Embora não esteja com pressa, veja bem...)

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Quis fazer uma homenagem àqueles que marcaram nossas vidas, definiram parte de nossas escolhas e de quem nós somos. 

Não sei como agradecer a todos os amigos que, generosamente, me confiaram suas memórias e sentimentos. Só posso dizer que me sinto honrada e, ao mesmo tempo, apavorada de tê-los decepcionado. Alguns relatos me inspiraram cenários, espero que me perdoem as licenças poéticas – e por não ter colocado a íntegra dos depoimentos. Fui me emocionando e, quando vi, tinha quase 4 mil palavras. Fui obrigada a suprimir algumas partes. Com muita chateação, podem acreditar. 

Alguns desses pais já se foram para outro plano. Que estejam felizes onde quer que estejam. Outros estão por aqui. Vida longa e próspera e feliz para eles!

Nádia, Cris, Prima Cláudia, Márcio, Luiz, Érica, Anselmo – muito obrigada.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
O que posso dizer? Amo mesmo tanto meu pai que até doí. E estou muito emocionada com a homenagem que vc fez pra ele.

Vc conquistou meu coração de pedra, querida Lady. E deixou uma grande lição pra todos: Existe um coração de carne nessa Lady Killer!!

Vc foi fofíssima, aliás,mesmo sem uma pá!

Um grande beijo!
André Ferrer disse…
Emocionante, Zoraya.
Marcio disse…
Obrigado pelo texto generoso, Zoraya!

Meu pai certamente está orgulhoso por figurar no panteão daqueles mencionados em seu texto.

E seu pai merece todas as homenagens, por haver legado ao mundo suas filhas tão admiráveis.
Érica disse…
Não vou dizer mais nada... só: chorei!
Minto... vou dizer sim rsrs Mesmo com a licença poética e tendo que cortar algumas coisas, seu texto foi primorosamente fofo! E amei ler o depoimento sobre seu pai e sobre o pai do Luiz. Chorei de novo rs
branco disse…
Todos os pais são especiais, todas as mães são especiais, todos os filhos, tios, sobrinhos,primos, etc.. um dia ainda vamos perceber que todo ser humano, cada qual ao seu jeito, é especial, assim como essa sua lembrança.
Antonio Fernando disse…
Eu me emocionei tanto com estas tuas palavras que vou me dar ao direito de não comentar nada. Só vou dizer "obrigado". O resto, vou guardar pra mim.
Soraya Jordão disse…
o que dizer do meu? foi o que pode, o que conseguiu, o que suportou.
Mário Baggio disse…
Um belo texto sobre relações afetivas de família, mesmo que tortas, às vezes. Já escrevi sobre isso várias vezes em meus livros. É preciso fuçar lá no fundo da gente, e isso nem sempre é fácil. Um texto que toca o leitor. Parabéns, Zoraya.
Ana Raja disse…
Muito especial o seu texto, Zoraya!
Anônimo disse…
Quantas emoções. Meu pai está retratado também, em fragmentos colhidos de todos eles. Nesse arquétipo q vc montou cabem todos os pais. Obrigado, querida Zoraya, pelas emoções.
Zoraya Cesar disse…
Nádia, Márcio, Érica - eu que agradeço demais da conta a vocês por essa prova de amizade inquestionável: confiança. Vcs e os outros amigos confiaram a mim memórias preciosas e bem particulares. Não tenho, nunca terei palavras para agradecer a confiança e os comentários, aqui e no meu zap. O que teve de gente emocionada! Passei o dia chorando. E agradeço pela oportunidade de eu tb poder falar do meu Paizinho e do meu Tio Celso. Enfim, amor por todo lado, como deveria ser sempre. Nádia, pra gente ver, no peito da Lady Killer tb bate um coração!

Ferrer - obrigada! que bom q vc se emocionou! isso é a glória pra um escritor, emocionar!

branco - e não é q é isso mesmo? Somos todos especiais para alguém.

Antonio Fernando, Nando - já fiquei mexida com o que vc disse aqui, depois de ler sua mensagem do zap, desabei de novo. Sua entrega de emoções foi medalha de ouro no meu dia.

Soraya - pois é. bom qd entendemos isso.

Baggio - obrigada. Deixar os não envolvidos nas histórias emocionados é a glória.

Ana Raja - obrigada!

Anônimo (Júlio) - amigo, eu q agradeço, eu que agradeço.

A todos, sem palavras para dizer o quanto me senti privilegiada e honrada com as histórias que me foram confiadas e com a reação dos envolvidos. E agradeço os comentários de todos, participantes e leitores, sempre gentis!
Albir disse…
Ah, que fofura! Sempre acreditei na sua redenção. Beijou todos os pais, não matou nem uma mosca e ainda homenageou um cachorro morto!
Mesmo sabendo que não vai durar, comemoro seu momento ternura!
Beijos!

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