70% >> Carla Dias


A carreira dele nunca foi celebrada pelos familiares. Aliás, eles costumavam evitar o tema a todo custo, mesmo quando ele se tornava a fonte de informações perfeita para a burocracia da tragédia.

Não se importava, não mais. Há muito tempo, deixou de se preocupar com o que as pessoas pensavam a seu respeito. Estabeleceu-se como profissional da área, construiu uma carreira que, há quase três décadas, sustenta sua vida. Achava de uma ironia delicada a forma como despertou para tal arte, mas também já não pensava mais tanto assim nisso. 

Considerou desistir. No início, sentiu-se leviano, aproveitando-se da dor alheia para garantir as compras do mês, evitar o corte da luz, ter um lugar para o qual pudesse voltar. Deu-se conta de que não havia motivos mais justos para enveredar por aquele caminho. Depois, compreendeu a importância do que fazia, mesmo provocando as crenças dos primos sobre a legitimidade de seu negócio, o que o tornou vítima da jocosidade deles. Ainda assim, havia um limite, pois sabiam que, eventualmente, poderiam precisar dos serviços por ele oferecidos. E estavam certos. Um dos primos foi até seu escritório e implorou por sua ajuda. Ignorava qualquer etapa daquele processo, não sabia lidar com a mistura de dor com burocracia, e a esposa estava tão balada, que se arrastava pela casa, muda.

Aceitou o trabalho, ofereceu um desconto de 70%, exclusivo para familiares, e garantiu ao primo que não precisaria se preocupar com nada. Sentiu-se, naquele momento, um pouco inseguro, pois era a primeira vez que um parente o procurava por conta de seus serviços. Na verdade, eles faziam questão de manter distância.

Durante o funeral da tia-avó, ele coordenou o evento. Não faltou água, os lenços descartáveis estavam espalhados estrategicamente, havia uma enfermeira a postos, para amparar quem fosse durante surtos e desmaios. Na entrada, uma jovem elegante recebia e conduzia os familiares e amigos à sala de velório. No escritório, mantinha um representante de cada uma das três principais religiões, para atender pedidos de amparo, em caso de descrença aguda, causadora de instabilidade no evento. Também mantinha um ateu na equipe, pois, não raro, a religiosidade desaparecia diante da perda inestimável.

O mestre de cerimônias emocionou a todos com sua abordagem sobre o fim da jornada de Dona Letícia. Foi difícil para ele redigir o memorial, porque a tia-avó era das piores pessoas que já conheceu, mas se esforçou e pensou em Jandira, irmã dela, que costumava contar histórias incríveis sobre fantasmas comandando o planeta. Ela era divertida, transgressora, uma pessoa inesquecível que, por ser quem era, foi enterrada às escondidas. A morte dela foi alívio para muitos, os que não gostavam de serem incomodados por questionamentos.

O evento foi um sucesso. Algumas pessoas, que nunca haviam lhe dirigido a palavra, pois achavam seu negócio de morte um mau agouro evitável, gastaram um pouco de vocabulário com ele durante a despedida.

O primo, arrasado com a morte da mãe, agradeceu o bom trabalho e até o abraçou demoradamente. Antes de se desenlaçar dele, cochichou em seu ouvido:

— Você também faz festa de casamento? 70% de desconto?


carladias.com.br

Comentários

Jander Minesso disse…
Que delícia de texto! Ri horrores e senti pouquíssima culpa!
Nadia Coldebella disse…
Antevejo o resultado do casamento. Adorei como vc brincou nessa história. Muito legal!!
Zoraya Cesar disse…
HAHAHAHAAHAH um texto muitíssimo bem elaborado e engraçado de Carla Dias, um momento histórico (por ser engraçado, veja bem, pq bem elaborado é sempre). Amei a história! E quero a continuação do casamento!
Albir disse…
O papa- defuntos finalmente teve o reconhecimento da família. O tema pode ser qualquer um para um bom promoter. Muito divertido!

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