O BALÃO >> Albir José Inácio da Silva

 

Não gostava daquele tema, mas as pessoas por maldade procuravam fustigá-lo nas conversas. Não frequentava enterros, velórios, não assistia filmes de vampiros, zumbis e outras manifestações diabólicas. Gostava do seu trabalho, dos chefes e de jogos eletrônicos. E amava Josélia, perdidamente.

 

Josélia chegou no setor há duas semanas e, além do amor à primeira vista, Lênio percebeu que ela não ria quando os outros zombavam dele, contando histórias de terror. Um idiota do tipo maromba-suplemento-bomba chegou a colocar sobre a mesa, de frente para ele, uma caveirinha que lhe dava calafrios.

 

Josélia também era vítima daquela malta. Chamavam-na de Lily por causa de uma mecha mais clara do lado esquerdo e um biquinho de cabelo na testa.  Diziam que era bico de viúva e que seus maridos morreriam cedo. Que ignorância dessas amebas associarem um detalhe tão charmoso, colocado por Deus, e que transforma o rosto angelical de Josélia num quase coração, a qualquer coisa ruim.

  

A baixa autoestima de Lênio não o deixava ver que seu amor era correspondido.  Ela quase teve que esfregar na cara dele a verdade. Não se julgava merecedor de alguém tão sublime. Sua inocente Josélia era gentil com todos, não sabia que pelas suas costas os abutres faziam o sinal da cruz. Mas agora a paixão lhe dava forças para enfrentar a súcia de debochados a quem ele, por sua vez, fulminava nas reuniões com o chefe, fazendo com que recebessem as piores tarefas e até punições.

 

Quando ela sugeriu o jantar, ele ficou desconfortável, não gostava de eventos sociais. Mas não conseguia dizer não para sua Josélia e pensou que aquela seria também a sua família.

 

A família não poderia ser mais acolhedora, o que explicava a doçura e a generosidade de Josélia. Tinham hábitos engraçados, gostavam de festas, mas não de salões, clubes ou restaurantes. Gostavam de luaus. Tinham um telescópio no terraço para admirar as estrelas, explicaram. Lênio não gostava do céu à noite, achava assustador.

 

O pai de Josélia contou uma história comprida sobre um palpite para jogar no bicho que deu na cabeça. Disse que recebeu a mensagem da mãe falecida há muitos anos. Lênio estremeceu, mas acreditou que foi através de sonho. Piorou quando começaram a falar de outros mortos com a intimidade de quem ainda convive. Ele congelou na cara um sorriso botulínico para disfarçar o medo.

 

Percebendo o embaraço, Josélia puxou assuntos mais suaves, e a noite terminou bem, quer dizer, não terminou ainda.

 

Levado ao quarto de hóspedes, Lênio suspirou aliviado. Mas o tempo virou, relâmpagos e trovões cortaram a noite e o silêncio.  Lá embaixo, um maldito carrilhão, desses que ninguém tem mais, badalou meia-noite. Gatos namoravam no telhado, produzindo gemidos humanos que obrigaram Lênio a cobrir a cabeça.

 

No quintal, a família, avisada pelos vizinhos, olhava o telhado. Um balão já sem força, mas com uma pequena chama ainda, estava preso na antena. Pai com bursite nos dois ombros, irmão com bota ortopédica, e lá se foi a atlética Josélia escada acima em busca do balão. Na ponta dos pés, vassoura na mão, ela conseguiu soltar o balão, que flutuou alguns metros.

 

- Está voando, está voando! – gritou a mãe nervosa.

 

Arrastando as fitas na cumeeira, o engenho ficou preso no para-raios. Da escada Josélia não alcançava, subiu na calha e esticou o braço.

  

- Sobe mais, Josélia, sobe mais! – gritou o irmão.

 

Pisando nas telhas, Josélia conseguiu pescar o balão.

 

No quarto, um aterrado Lênio ouviu barulhos estranhos no teto e frases soltas como “está voando, está voando!” e depois “sobe mais, Josélia, sobe mais”.

 

Josélia entrou no quarto com a vassoura na mão, uma bucha fumegante na outra e um sorriso triunfante para contar a façanha ao namorado. Mas não teve tempo. Olhos arregalados e catatonia evoluíram para tremores, convulsões, apneia e roncos na tentativa de respirar. Após alguns minutos de agonia, Lênio desmaiou.

 

Seguindo a ambulância, a amorosa família de Josélia lotou dois carros até o hospital.

 

A enfermeira demorou uma eternidade e foi cercada quando voltou para dar notícias:

 

- Chegou aqui melhor, acordado. Mas quando eu perguntei se vocês podiam entrar, ele teve outra crise e precisou ser contido. Primeiro fisicamente, depois com injeção. Os médicos estão com ele agora.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Kkkkkkkkkkk! Amei! Faltou só matar o infeliz. Ou a Josélia kkkk. Juro que uma mortezinha cabia direitinho. Ah, Albir, quase quase fazendo parte da irmandade!
Anônimo disse…
Todo mundo foi terminar o programa noturno no hospital. Hilário. Mas ninguém morreu mesmo Albir? André Ferrer aqui.
Anônimo disse…
Gostei muito da construção das personagens. Soraya
Zoraya Cesar disse…
Sorriso botulínico foi demais!! Ri muito com a narração do penúltimo ato, Josélia, balão, vassoura. Pobre Lênio! Ele bem podia fazer uma terapia, pra deixar de ser tão fresco. Ou passar uma temporada comigo e a Nádia...
Jander Minesso disse…
Ri litros, Albir! Muito obrigado pelas desventuras do Lênio.
Albir disse…
Obrigado a todos pelos comentários.

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